Operários ou burocratas, os homens em questão são feitos dos mais diversos materiais. O título, à primeira vista, refere-se à estátua de um deles. À imagem que molda o colosso que nunca existiu, a do pedreiro que se tornou um problema para o sistema. A estátua é também uma mentira criada pela Polônia comunista que o filme ataca.
O protagonista em questão é feito de filmes e memórias alheias. Nunca temos acesso direto à personagem, o que nos leva com O Homem de Mármore – como apontaram outros críticos – à estrutura narrativa de Cidadão Kane. Um adendo: de Kane ainda havia um contato mínimo, o homem no leito de morte; na obra de Andrzej Wajda nem isso há.
Seu Rosebud, por sinal, é-nos dado de cara: é a estátua no depósito do museu. Kane era um magnata do império capitalista e sua morte seria lembrada; restava ir atrás de uma pista (a palavra, o trenó) para encontrá-lo. Em caminho oposto, a cineasta de Wajda, Agnieszka (Krystyna Janda), primeiro encontra a peça sem vida, o mito, parte do significado ou significado algum; só depois sai em busca do homem.
A personagem ultrapassa e muito o vazio do grande objeto. O filme feito para a televisão termina por revelá-la em partes, sem direção exata, mas o suficiente para que descubramos, com Agnieszka, a tragédia do homem simples e honesto, operário exemplar usado como propaganda comunista e depois cuspido ao esquecimento.
É a história, a partir do que é possível apreender, de Mateusz Birkut (Jerzy Radziwilowicz). Investigação que, a certa altura, ganha vida própria: entre os arquivos revisitados pela cineasta e o filme que Wajda faz correr em cores, com situações que não podem pertencer à memória de todos os entrevistados, há um casamento perfeito.
O Homem de Mármore oferece diferentes ângulos, incluindo o do próprio Wajda. Se Birkut em alguns momentos estava sozinho, como aquele em que conversa com a menina que vende jornais e cigarros, como outra pessoa poderia saber as palavras que trocaram? Se Kane estava sozinho no leito de morte, como alguém sabia sua última palavra?
Cada um desses olhares confirma o que pensamos saber – ou o que julgamos – sobre Birkut, seja no instante fechado em uma sala, seja no cinejornal: trata-se de alguém honesto. Após conquistar o recorde, com sua equipe, do maior número de tijolos levantados em determinado tempo, ele é coroado garoto propaganda dos dirigentes comunistas.
Então é necessário vendê-lo, o que o leva a viajar, de cidade em cidade, para inspirar outros operários: é preciso erguer paredes, trabalhar, ser esse homem de mármore que tanto preconizam o partido e o presidente, que tanto pedem os burocratas e cineastas do mesmo grupo político. Tomam o homem, tornam-no objeto, e não sabem o que fazer quando ele resolve protestar contra o desaparecimento de um amigo.
O problema de Birkut, diz Wajda, é se manter fiel ao que acredita. Sua missão não ultrapassava o desejo de manter amigos, a mulher que ama e erguer paredes. Ao se destacar de tantos, paga o preço por não ser o que pedem os “escultores” do sistema. Os que se arrependem ainda podem voltar e angariar bons cargos nessa Polônia que passa das paredes de tijolos – aos olhos de Birkut – às usinas gigantes – aos de Agnieszka.
A prosperidade é ilusória enquanto o material é o mármore ou a propaganda. O filme de Wajda lança-nos nos vãos estreitos dos verdadeiros homens da História, na trilha do cabisbaixo Birkut com suas dores de consciência, sua embriaguez por não dar conta de compreender o que o rodeia, por que alguns somem ou se tornam espiões.
O protagonista é revelado pela mulher. Janda é rápida, atrevida, contorce-se e cerra os dentes, estica as longas pernas para diferentes lados e deixa evidente sua liberdade de pensamento. É o retrato da juventude livre, geração seguinte àquela que abraçou o comunismo pós-Segunda Guerra, com seus motivos para dar apoio a Lech Walesa. Viria então outro homem, o de ferro, de novo com Janda, Radziwilowicz e Wajda.
(Czlowiek z marmuru, Andrzej Wajda, 1977)
Nota: ★★★★☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
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