Parte 1 (08 agosto 1962)
Bem, aí está esse O Pagador de Promessas, que tanto deu de falar de si, aqui e alhures, bem e mal lá fora (certos críticos franceses não se conformaram com a concessão da Palma de Ouro à película brasileira), bem e mal aqui dentro, pois, por incrível que pareça, já se destratou O Pagador de Promessas em São Paulo, logo após a sessão especial dedicada à crítica, antes mesmo do Festival de Cannes.
Mas isso não tem importância e o principal é o fato de haver a Palma de Ouro sido conquistada num confronto duro, imparcialmente julgado e em que se colocavam, como vencedor certos, homens como Buñuel, Bresson, Antonioni, Pietro Germi ou Otto Preminger. O mais modesto de todos, um jovem desconhecido, quase um estreante
na direção cinematográfica, foi contudo o vencedor e, com a outorga do grande prêmio, talvez quisesse o júri de Cannes distinguir exatamente o mais modesto, o mais jovem, o estreante do festival, numa homenagem à sua juventude e ao cinema que ele representava, tão digno da Palma, quanto os grandes ao seu lado. Não importa, realmente, que o despeito se haja manifestado dentro e fora. O Pagador de Promessas não precisa desses exegetas de mau agouro, seu valor independe da opinião deles.
Impressionara-me profundamente a obra de Anselmo Duarte, quando a assisti em abril último, antes de Cannes. Revi ontem, com a mesma emoção profunda, a transposição dessa peça do teatro brasileiro moderno para os quadros do cinema, brasileiro, principalmente. Cinema genuíno, original e sem imitações. Filme que, prendendo-se ao regional, ao nacional, se integra no universal e que, por ser a partícula de uma comunidade, é a célula de uma universidade. Cinema de linhas simples mas de realização tão complexa, exatamente por se relacionar a uma intriga de raízes psicológicas, sociológicas, sentimentais e telúricas tão íntimas.
Mas, apesar de contar com recursos que o teatro não possui, não quis Anselmo Duarte fugir da dimensão geográfica e dramática ideada por Dias Gomes em sua peça, limitando, como num desafio toda a ação cinematográfica ao âmbito muito restrito do adro da igreja de Sta. Bárbara, palco (e esse termo vem a calhar, justíssimo) de toda a tragédia daquele homem rústico, que faz de sua promessa uma questão de honra e de dignidade. O adro de Sta. Bárbara seria assim um início e um fim. Início do cumprimento da palavra dada e fim da vida de Zé do Burro. E em redor desse pequeno mundo, a girar, como satélites, as personagens secundárias da ação, atraídas pela força centrípeta do drama interior de Zé do Burro, gerada naquele diálogo de surdos, entre ele e o padre Olavo. Um, firmado em sua fé de homem simplório, curtida ao sol do sertão. Outro, apoiado nos espeques do dogma, nas sutilezas teológicas e em seus preconceitos de seminário. A fé, a boa e ingênua fé, contra a intolerância e a incompreensão. E em redor dos dois surdos, a cidade antiga. E no cenário barroco, os festeiros de Sta. Bárbara, os capoeiras de Canjiquinha, a mãe de santo, o Galego do Boteco, as vendedoras de acarajé, o Zé Coió, o Bonitão, explorador de Marli, as beatas do pequeno submundo da Bahia, de Salvador, tão bem aproveitado por Anselmo Duarte, numa função certa e essencial na caracterização universal de sua película. Um microcosmo em que costumes, crendices, superstições ancestrais se entrechocam com a fé, o dogma, a liturgia religiosa, num sincretismo por vezes primário e agressivo.
E se para alguns O Pagador de Promessas é um libelo contra a Igreja, creio que para muitos é uma exaltação da fé católica e da infinita tolerância de Cristo. Assim pensou o clero da Bahia, que deu a Anselmo Duarte toda a sua ajuda. Bem haja a esses padres inteligentes.
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Parte 2 (9 agosto 1962)
Direção e Interpretação
Em crônica de ontem, analisei o tema de O Pagador de Promessas e o tratamento dramático que lhe deu Anselmo Duarte no cinema, quase que limitando sua ação a um único cenário, no adro de Sta. Bárbara, onde fez evoluir a tragédia de Zé do Burro, na inutilidade de seu diálogo com padre Olavo, à frente de algumas dezenas de personagens secundárias, o povinho das ladeiras de Salvador. Propósito árduo, levado a termo, contudo, através de soluções inteligentes, não raro engenhosíssimas. Aquele longo travelling ascendente, desdobrado no plano inclinado das escadas de Sta. Bárbara, com a câmara a seguir padre Olavo e Zé do Burro, à luz cinzenta da manhã nascente, é um exemplo bem representado da habilidade com que se houve Anselmo Duarte e sua equipe, na execução prática dessa inventiva, realizada com tal precisão que só os enfronhados das sutilezas técnicas do ofício podem perceber a existência do artifício, sem imaginar entretanto a armação da carpintaria necessária a essa movimentação de câmara tão complexa. O efeito obtido por essa subida de escadas (a transformar-se no símbolo capital da obra, o calvário de Zé do Burro) é surpreendente e funcional, provoca no espectador a impressão de que é o cenário todo que se movimenta em torno das duas personagens, abafando-as, mantendo-as quase imobilizadas no centro dramático da cenografia barroca. Há assim, visivelmente caracterizada em O Pagador de Promessas, uma ânsia de criação raramente sentida antes no cinema brasileiro talvez apenas objetivada em sequências esparsas de muitas de suas fitas, sem conseguir caracterizar-se num bloco orgânico. Sente-se esse ânimo criador a insuflar toda a película de Anselmo Duarte. Apenas num único momento abre-se uma brecha nesse bloco: quando aquele repórter sensacionalista, com a turba da televisão, entra no campo das câmaras, invadindo os degraus de Santa Bárbara com sua demagogia jornalística. Que houvesse o demagogo a perturbar, com sua presença, o espírito popular e a visão folclórica da festa pitoresca, seria admissível e funcional pela força do contraste. O que destoa, contudo, é o traço, por demais carregado de caricatura, com que Anselmo Duarte delineou sua personagem, a mais insignificante de toda a galeria de tipos de O Pagador de Promessas. Fora disso, não há como deixar de admirar a segurança e o “aplomb” com que Anselmo conduziu seus intérpretes nos meandros pejados de sutilezas psicológicas da representação dramática. E de que intérpretes conseguiu ele valer-se! Leonardo Villar, primeiramente, por ser o centro de toda a intriga, numa demonstração até esbanjadora de seu talento, de sua versatilidade de ator. Sai das dimensões restritas do palco e vai lá fora enfrentar as câmaras, não raro numa tomada próxima em que vale mais o significado de um gesto, ou a centelha de um olhar, do que o fraseado do diálogo, ou a implicação da mímica. A enfrentá-lo, outro ator não menos seguro, não menos sombrio: Dionísio de Azevedo, o meu amigo Dionísio, que tanto se ressentiu, quando, há alguns anos, tive a sinceridade de, neste jornal, lhe dizer, sem rodeios, minha opinião sobre a fita que ele realizara então. Dionísio, por essa época, andava emperrado na falsa estética de um teatro de televisão que se dizia de vanguarda. Mas soube libertar-se dele, a crise passou e Dionísio pode aparecer como, em verdade sempre foi, o ator genuíno que é, com aquela humildade artística que tanto admirei, ou no teatro (A Morte do Caixeiro Viajante), ou no cinema (A Primeira Missa). Agora aí está ele em O Pagador de Promessas, em Padre Olavo, papel tão difícil quanto o de Zé do Burro, ao lado de Leonardo Villar, na mesma linha emotiva e humana, sem nunca se apartarem ambos da austeridade de suas funções. E há que falar de Glória Menezes, de Norma Benguel, de Geraldo Del Rey, de Roberto Ferreira, de todo aquele elenco secundário e humilde que dignifica a película de Anselmo Duarte. Mas isso ficará para outra oportunidade.
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Parte 3 (10 agosto 1962)
Comentários finais
Não tenho dúvidas de que um dos grandes fatores do êxito de O Pagador de Promessas em Cannes foi a absoluta originalidade de seu tema, de sua cenografia exterior, do aproveitamento do folclore riquíssimo da Bahia e, só mais remotamente, o da interpretação de todos os atores. A arte dramática na Europa chegou a tal refinamento que um ator de fora, um ator sem a formação profissional (e só Deus sabe quão complexo e árduo é esse aprendizado), adquirida em escolas especializadas, em academias dramáticas e no aperfeiçoamento com grandes professores, dificilmente há de impressionar um júri, num festival internacional, em Cannes, em Veneza, em Berlim, em Edimburgo ou em Locarno. Acredito, pois, mais no fator da originalidade do tema, do cenário barroco baiano, do aproveitamento folclórico com que se armou a película de Anselmo Duarte (e na sua criação pessoal, está claro) a ter certamente uma extraordinária influência no júri de Cannes, do que na possível contribuição dos intérpretes de O Pagador de Promessas na conquista da Palma de Ouro. É evidente que essa interpretação teve o seu peso no conjunto criador da película, mas não foi, a meu ver, o fator decisivo da vitória. Ninguém, contudo, há de esquecer a figura patética de Leonardo Villar, o vulto torturado de Dionísio de Azevedo, o rosto conformado de Glória Menezes, a extrema vitalidade de Norma Bengell, a contenção dramática de Geraldo Del Rey, o talento histriônico e chaplinesco de Roberto Ferreira, aquele sinceríssimo Zé Coió, e a intuição dramática de todo o elenco secundário de O Pagador, em que se sobressai a sensibilidade de Gilberto Marques (o Galego), de Antonio L. Sampaio (Pitanga), de Milton Gaúcho (o guarda), de Maria Conceição (a Tia) e a da turma dos capoeiras de Canjiquinha.
Glória Menezes é realmente uma grande esperança (sua estreia em O Pagador já é mesmo uma certeza), desde que tenha a sorte de encontrar em suas próximas criações um diretor de elenco que, como Anselmo Duarte, saiba o que quer. O mesmo se dirá de Norma Bengell, irreconhecível em O Pagador, totalmente diversa daquela atriz apática e passiva de Os Cafajestes, a demonstrar, em toda cena em que aparece, de quanto é capaz numa interpretação dramática verdadeira e sincera. Geraldo Del Rey, que vi apagado e apático também em Bahia de Todos os Santos, de Trigueirinho Neto, ressuscita-se em O Pagador no papel dificílimo de “Bonitão”, sobriamente vivido, sem os exageros e a demagogia próprios do tipo que interpreta. Na mesma linha de contenção se coloca Antonio L. Sampaio, Pitanga, que também em Bahia de Todos os Santos pouco se distinguiu (quanto vale um diretor que saiba sofrer o papel de seus intérpretes, que saiba orientá-los nos meandros perigosos da dramaturgia cinematográfica).
Enfim, O Pagador de Promessas se apresentou dentro e fora do Brasil como uma película mais completa, técnica e artisticamente, que até hoje se fez neste país. Nenhum setor de sua criação foi menosprezado, desde o da esplêndida fotografia de Chick Fowle, um dos trabalhos mais importantes de seu currículo brasileiro, até o acabamento da película, obra de montagem e de edição digna de grandes mestres (a Carlos Coimbra pertence esse setor, que ele soube valorizar com a sua competência, seu espírito de equipe e seu ânimo de criador). Finalmente os louvores ao trabalho do grupo da Rex Filme, laboratórios que se encarregaram do tratamento de O Pagador, e a Osvaldo Massaini, o produtor corajoso que soube acreditar em Dias Gomes, em Anselmo Duarte e na vitalidade admirável do cinema brasileiro. A todos o meu aplauso comovido e sincero.
(Folha de S. Paulo, 2º Caderno, pg. 8)

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