Quando Voam as Cegonhas, por Antonio Moniz Vianna

Pelo menos num ponto parecem concordar os críticos ocidentais: ao considerarem Quando Voam as Cegonhas* o melhor filme russo dos últimos tempos. Vamos mais longe: julgando pelos filmes (mais de uma dúzia) soviéticos exibidos no Rio logo após a guerra, também pelo que nos têm chegado eventualmente (Sadko, O 41º e Othelo) – ainda contando alguns a que assistimos em Roma, há cerca de três anos -, fazendo o balanço de duas dezenas de filmes, continua Quando Voam as Cegonhas na frente de todos, menos, é claro, de Ivan, o Terrível (1ª parte, lançada em 1947 no Rio), a “ópera” eisensteiniana.

O título merecido, mas não basta como distinção: não há vantagem em ser o melhor de um grupo onde a regra é a obra capenga ou ruim. Por Isso devemos, desde logo, observar que Quando Voam as Cegonhas é um bom filme; poderia nem ser isso e conservar aquele titulo de “o melhor” – porque quem ignora que o cinema soviético se encontra estagnado, sem luz e sem ar dentro desses subterrâneos nos quais submergem os cinemas totalitarizados? Se o título é merecido, não o é, porém, o grande prêmio que lhe foi atribuído no Festival de Cannes de 1958, quando se sabe que um dos concorrentes era Mon Oncle – e Mon Oncle, sim, é obra-prima. Ainda assim, o prêmio injusto vem a ser nada escandaloso se comparado aos que consagraram, à custa do jogo de influências políticas, outras fitas soviéticas, como uma versão tão flácida de Othelo e uma imbecilidade como O 41º.

***

Quando Voam as Cegonhas, já no prólogo, mostra suas duas principais linhas: a do romantismo e a do formalismo, em cenas que correm com o casal de namorados pelas ruas da madrugada russo. As duas linhas são anômalas no cinema soviético: a primeira sempre foi rara ou nula, a outra sempre foi combatida (vejam-se, por exemplo, os atropelos que Eisenstein teve de enfrentar). Uma certa tendência para o amor-erotismo foi notada, é certo, em O 41.°, mas freada pela propaganda política e, principalmente, pela falta absoluta de categoria artística. A história de amor de Quando Voam as Cegonhas, contada às vezes em poema – e às vezes, também, quase “ocidental”, senão internacional, nas emoções e sentimentos -, somente pôde ser levada à tela, como observa o crítico francês Jacques Doniol-Valcroze, “graças à passagem sobre o cinema soviético desse vento liberal (…). Acontecimentos recentes podem fazer temer que esse vento cesse de soprar… esperemos ainda”.

Com – ou para – a poetização dessa história de amor, que a outro crítico causou a impressão de “uma espécie de Guerra e Paz da última guerra”, mas sentida do ponto de vista de uma “moderna Natacha”, o romantismo se torna desabrido: “não é por acaso que Tchaikovsky intervém várias vezes no comentário musical”, acentua ainda Dominique Delouche. Do Romantismo passa a fita ao formalismo, ou melhor, à imagem trabalhada, enfeitada na angulação, no enquadramento, no contraste sombra-luz. Elementos que podemos classificar de neo-expressionistas – essa impregnação pelo expressionismo notada, fora da escola alemã e, até hoje, em obra de qualquer “temperamento”. E que se combinam com outros, com superimpressões do velho (e grande) impressionismo da escola francesa, da combinação nascendo os melhores instantes de Quando Voam as Cegonhas: 1) Obsessão das escadas: numa cena romântica, no início; na tensão da heroína, enquanto sobe os mesmos degraus desfigurados pela bomba, até o apartamento onde estavam seus pais na hora do bombardeio. 2) A cena da sedução, em violento claro-escuro, com a jovem, entontecida sob novo bombardeio, cedendo ao primo do noivo. 3) A morte do soldado, subjetivada pela fuga do sol, dos troncos da árvores altas, enquanto o homem cai ao chão em câmara lenta: as últimas coisas em que ele pensa (Tatiana, de vestido de noiva; o casamento) se superimprimem às imagens de fuga, de esvaziamento. Deve-se ressaltar outro elemento de estilização: o movimento da câmera várias vezes utilizado na narrativa e realmente prodigioso pela rapidez e firmeza com que segue um personagem ou atravessa uma multidão: foi justo, assim, o prêmio atribuído a Sergel Ouroussevsky, o fotógrafo (e verdadeiro co-autor da fita) pela Comissão Técnica do Cinema Francês.

Entre as boas cenas referidas, todas com a sua condição climática deliberadamente traçada (parecendo estudada até a sua colocação na narrativa, a Intervalos regulares), nem tudo é apenas história ou o cimento de ligação dos citados clímaxes. Há o lugar-comum: o modo de introduzir na trama a notícia do começo da guerra é o mesmo (o locutor radiofônico na interrupção de um programa) usado por Hollywood em cem filmes pelo menos. Há, como um dos elementos-chave na história, isso que Doniol-Valcroze considera aberrante: “o automatismo que conduz Veronika a casar-se com Mark unicamente porque cedeu a ele”. O crítico parece um tanto surpreso ante o fato perfeitamente claro na referida cena do puritanismo de uma sociedade como a soviética, “na qual o ato sexual leva obrigatoriamente ao casamento”. Ora, a “alma russa”, tradicionalmente moralista, nisso tem demonstrado uma espécie de “marxismo-resistência” que não de hoje e é tão sólida que não foi varrida nem pela liberalidade daquele “vento”. Ainda na mesma área, mas não exatamente dentro do mesmo preconceito, poder-se-ia acrescentar como o erotismo, no cinema soviético, é um fenômeno repelido a ponto de ser praticamente inexistente. Veja-se a sequência da sedução quase à força, de Tatiana Samoilova neste filme: nunca foi tão discreta a câmera em momentos semelhantes.

Quando Voam as Cegonhas é o primeiro filme internacionalmente famoso de Mikhail Kalatozov. O diretor, porém, está no cinema desde 1928 – tendo sido cameraman e passado pelo documentário, com dois filmes: O Sal de Svanetia, a descrição da “existência trágica dos habitantes de Svanetia, prisioneiros da neve e da miséria no meio do Cáucaso”; Um Prego no Sapato, que, considerado um filme “negativo” pelo exército soviético, foi proibido e causou na recém-iniciada carreira de Kalatozov um silêncio de sete anos de duração. Só em 1937, terminado o castigo, Kalatozov reiniciou suas atividades, fazendo dois filmes num programa de exaltação da aviação. Durante a guerra, em colaboração com Sergei Gerasimov, ilustrou sob o título significativo de Invencível, o episódio do cerco de Leningrado pelos alemães. Também passou Kalatozov por um “estágio hollywoodiano”, durante a guerra; e seu contato com os americanos lhe deu o assunto de um filme, A Conspiração dos Condenados, cujas intenções políticas são evidentes.

As qualidades artísticas de Quando Voam as Cegonhas tornaram-se surpreendentes pelo fato de, até então, Kalatozov ser apenas um artesão sem maiores preocupações que as de aviar as encomendas feitas pelas autoridades cinematográficas de Moscou. A surpresa de Kalatozov se faz acompanhar, ainda, de uma revelação: a de Tatiana Samoilova, o corpo de camponesa russa, mas o rosto expressivo e onde o talento não raro está empatado com a beleza – essa beleza que sai do olhar, como uma fagulha e que envolve e justifica aquele talento. Sem Tatiana, as cegonhas que voam no começo e no fim, talvez voassem menos disciplinadamente. É graças a ela, quando começa a distribuir a esmo as flores reservadas ao noivo que não voltou, graças ao seu sorriso em coexistência dramática com as lágrimas escorrendo-lhe no rosto, que não precisamos prestar atenção ao discurso feito por um herói soviético na estação: um discurso de paz, em cima do cadáver da guerra ainda quente. Um discurso que, além de completamente inútil, parece indicar que os russos nunca estão bem certos da força antibelicista das imagens de uma história de amor e de separação. Talvez seja por não acreditar na suficiência da imagem poética que os russos enchem de retratos e discursos o seu cinema.

(Correio da Manhã, 1º de julho de 1960)

*Moniz refere-se ao filme como Quando Passam as Cegonhas.

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