O Ano que Vivemos em Perigo, de Peter Weir

O fotógrafo e cinegrafista coleciona histórias, vidas, imagens das pessoas com quem conviveu, e nos fornece a narrativa sobre o fechado e excitante casal formado por Mel Gibson e Sigourney Weaver. Ele, Billy Kwan (Linda Hunt), recusa-se a ser o protagonista ao passo que não deixa de mover as peças do jogo, inclusive uni-las.

É Billy quem leva Guy Hamilton (Gibson) à tarde ensolarada e à beira da piscina da qual sai Jill Bryant (Weaver). A mulher é irresistível. Em vão, Guy tenta se desviar do que sabemos ser destino certo. O narrador é chamado de anão, alguém “meio chinês e meio australiano, parecido com um duende, que banca o casamenteiro”, observa a crítica Pauline Kael.

Ainda que evitemos algumas descrições físicas, é trabalho árduo combater o que as próprias imagens sugerem: à suposta perfeição dos amantes calados, guiados por instintos, O Ano que Vivemos em Perigo responde com a consciência política e social daquele que é considerado imperfeito, freak e – para além dos limites da tela – a mulher na pele do homem.

É a personagem mais interessante desse filme potente e sóbrio repleto de cenas que se reservam à impessoalidade, às vezes apaixonante, entre a possibilidade da erotização e do estouro da revolução armada. Para Billy, assistir à história que ajuda a criar é dar um toque especial aos dias de fogo nos quais todos estão, na Indonésia de 1965.

Os comunistas avançam. Os militares preparam-se para o combate. O fuzilamento, presenciado ao fim por Guy e seu motorista, é o ponto final da política feita à bala, da era de extremos na qual o jornalista termina, ao olhar de Peter Weir, pela obra de C.J. Koch, como alguém em busca do fato, sem se misturar, ou sem deixar transparecer a mistura.

De Jill temos o exato oposto: ela misturou-se tanto que já tem o cinismo estampado; funcionária da Embaixada do Reino Unido, em frequentes convescotes de braços dados com um figurão militar, ela enxerga além. Guy seria um amante passageiro, como foi outro, um francês que vemos apenas através de uma foto, na casa de Billy.

Mulher dominadora, de informações privilegiadas, filha direta desse desfile de situações que nos faz pensar em conhecidas tramas de espionagem. Quem mais quer enxergar, Guy, é sempre quem termina cego – até a representação dar lugar ao fato em si, quando ele tem o olho machucado ao tentar furar uma barreira militar.

Billy dá algumas senhas importantes ao protagonista. Weir aposta nesse jogo de descobertas: no caso de Guy, a jornalística, o entendimento sobre a disposição de cada peça; no caso do amigo fotógrafo, a da própria ideologia. Se antes chamava um ditador de gênio, depois terá motivos para protestar, inclusive aceitando a própria morte por uma causa.

Até o fim não sabemos quem são essas pessoas. O acesso maior dá-se pelos sentimentos, e através deles somos impelidos a acreditar que a relação a dois poderá salvar os belos ao centro da arena. Ao som da trilha sonora de Maurice Jarre, Guy aventura-se em seu carro velho com Jill ao lado: fura um bloqueio por diversão, à noite, e em outro momento é surpreendido pela mulher molhada de chuva, na porta do escritório em que trabalha.

O calor é intenso. Tal componente narrativo oferece sinais para compreender as personagens desse lugar perigoso: a transpiração é a própria base da fuga (o sexo, a aventura) e da inquietação, à medida que o mal-estar causado pelo ambiente reflete-se nos corpos, na roupa molhada de suor, nas gotículas sobre a pele, no ar condicionado que não funciona.

Jill tem o sobrenome de Louise Bryant, feminista, ativista política e jornalista, amante de John Reed, o autor de Dez Dias que Abalaram o Mundo. Não parece mera coincidência. Revoluções e amores para o cinema (Reed teve os seus na bela obra de Warren Beatty), com as formas que não escondem encaixes e atalhos da boa ficção.

(The Year of Living Dangerously, Peter Weir, 1982)

Nota: ★★★★☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; conheça seu trabalho

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