Floradas na Serra, de Luciano Salce

A artificialidade é tamanha que a beleza desaparece. O efeito marca o capítulo final de um projeto à brasileira, o de um cinema “de qualidade”, como o do estrangeiro, cinema que pretendia representar o nosso melhor. Projeto ambicioso que chega aqui à aparência dessa gente bela, rica, recolhida em Campos do Jordão, perto da morte.

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Da Vera Cruz, Floradas na Serra não esconde o brasileiro da tela, sequer o Brasil – como diriam alguns detratores do estúdio que nasceu e morreu rápido demais. O filme mais parece um corpo estranho em 1954, momento em que alguns novos cinemas batiam à porta, inclusive no Brasil, e quando doses de psicologismo e realismo pareciam dominar a cena.

O problema é que a Vera Cruz, ainda que ambiciosa, nasceu velha. Ou, como diria Glauber Rocha, com alguma razão, um projeto no qual a “expressão nacional” era dada de cima para baixo. Nesse sentido, eram os estrangeiros que revelavam o Brasil, ou o modo estrangeiro de fazer cinema. Na visão de realizadores como Glauber, o projeto não era nacional.

Além da não identificação com a empreitada, da impossibilidade de traduzir uma estética nacional pelas formas industriais da Vera Cruz, o filme não ajuda. Do empenho de Luciano Salce sobra-nos pouco mais que um mundo perdido, quase inexistente, uma cidade do interior com estradas de terra, refúgio para gente chique mas carcomida. Ou, como se insinua sem que seja necessário gritar, bela por fora e podre por dentro.

A começar por aí, assistimos a lances melodramáticos que não terminam nunca, sem que a direção seja capaz de fazer valer o contato entre amantes – não consegue nem ao se valer de atores talentosos. Cacilda Becker é a dama emoldurada, assexuada, um pouco Garbo, um pouco personagem de Fassbinder; Jardel Filho resvala no troglodita com bom coração, que ama, mas cuja natureza – a vontade de ir embora – não o impede de correr às outras.

O romance migra rapidamente ao amor perdido, nasce derrotado, do acidente, quando o casal encontra-se na estação de trem; ele chega, ela quer ir embora. Tocam-se pelas costas, trocam palavras no bar. O trem anuncia a partida. Ela corre para não perder a viagem e, ao ajudá-la, ele termina com a mulher nos braços, sem o trem, desmaiada.

Logo voltam a se encontrar: no hospital, ela resolve presentear uma criança doente. Encontra o amante acamado, em tratamento. Ambos são tuberculosos. Um deles conseguirá se recuperar mais rápido, enquanto ao outro a doença impõe-se.

Bruno, o amante, revela-se escritor pobre, do tipo com clichês sem qualquer vergonha – o que, não é exagero dizer, acompanha a fragilidade da Vera Cruz no que diz respeito aos roteiros. Do verbo raso escapam linhas como “nunca escrevi com alguém olhando para mim”. Ela, coitada, continua a beber e fumar, a se desequilibrar – porque ama.

Glauber aborda essas linhas lacrimosas em Revisão Crítica do Cinema Brasileiro: “(…) Cacilda dizia mais ou menos assim: ‘… eu sou tua, porque te amo… etc e tal’, numa voz rouca e dramática, que despertava risos nas plateias. E num barco, descendo um riacho, Jardel dava a louca, agarrava Cacilda e gritava: ‘eu te amo… eu te amo… eu te amo…’”.

A rica será punida. Não é novidade. No conflito de classes sem sabor e até um pouco envergonhado, será o escritor pobre, de suposta grandeza moral, que retira forças para escapar, à medida que a moça tomada pela doença e pelo amor – seu interior inalcançável contrasta o que tudo se vê pelo raio-x – está à beira da morte.

Lenda do teatro, Cacilda é refém do visual caprichado da fotografia de H.E. Fowle e Ray Sturgess, de certa ausência de vida provocada por um cinema de figuras autômatas, enfileiradas à frente da lareira. O magnetismo natural da atriz e de seu parceiro em cena não salva esse melodrama brasileiro cheio de gente bonita e problemática.

(Idem, Luciano Salce, 1954)

Nota: ★★★☆☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; conheça seu trabalho

Veja também:
Ontem, Hoje e Amanhã, de Vittorio De Sica

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