As mentiras contadas pela irmã Sharon Falconer (Jean Simmons) são poucas e foram criadas para sua adaptação. As que saem da boca de Elmer Gantry (Burt Lancaster) são constantes e se tornaram sua própria forma de vida. O que diferencia essas duas personagens de peso em Entre Deus e o Pecado nunca será suficiente para desuni-las.
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Ao contrário, elas compreendem que precisam estar juntas ainda que não tenham lá uma grande combinação. A mulher projeta-se como santa, angelical; ele brada o impensável aos que miram a Bíblia no púlpito e é pura rocha, puro conflito com seu cabelo de redemoinhos, pontas para diferentes lados, desgrenhados.
Quando ela quer fugir ele quer ficar, quando ele quer fugir, ao fim, é ela que quer ficar e dar vida ao que acredita ser seu templo, a casa de Cristo. Por simples grandeza do roteiro do também diretor Richard Brooks, a partir do livro de Sinclair Lewis, essas escolhas sempre dão vez a um conflito maior: no caminho dos pregadores da palavra estão os negócios, a imprensa, o desejo e o próprio passado indesejado – materializado na prostituta.
O filme de Brooks é corajoso e estranhamente atual: o avivamento – ou, neste caso, a Igreja itinerante que passa de cidade em cidade para cumprir seu show, tal como um circo – é uma empresa que precisa de estratégias e artistas, figuras inspiradoras e eletrizantes. Elmer é o pobretão com o dom da palavra, o mau-caráter, perfeito àquele show.
Elmer gera-nos confusão: tendemos a gostar dele em muitos momentos, sem nunca saber o que realmente move suas investidas. Sabemos que crê em Deus, mas vemos ali o homem que se aproveita da crença – a dele, a dos outros – para insuflar a moralidade que o próprio não sustenta. Brooks mostra exatamente o que ocorre quando se pretende viver sob o manto da santificação ou da heroificação proporcionado pela Igreja.
O falso pregador não se vê como tal. Menos ainda como livre de problemas. Em Lancaster e seu sorriso gigante, assistimos ao curso de uma manobra na qual as más e as boas intenções estão tão próximas que não é mais possível apartá-las. O espectador, com razão, perguntará sobre as boas. O diretor nega-se a criar vilões em carapaças identificáveis.
Brooks oferece a consequência, nunca a causa. Elmer, Sharon e todos os outros – todo um sistema que passa por redações de jornal, pela polícia e pelos inferninhos nos quais estão alocadas algumas belas prostitutas como Lulu Bains (Shirley Jones) – assentam-se em um terreno de conflitos no qual a procura desesperada por Deus não exclui todas as contradições presentes ao reino de homens tortos e carne fraca.
A cada show a tenda é lotada. As pessoas querem a palavra, o milagre, aceitam fazer parte do espetáculo. São necessárias. Com tons em cinza e marrom, Brooks forja um mundo bruto que isola o picadeiro, seus “artistas” e o público que grita e pede ajuda. A certa altura, um senhor da plateia age como animal, como se estivesse possuído pelo Diabo.
O incêndio ao fim não é vingança de Deus – ainda que assim possa ser compreendido. Nasce da bituca de cigarro. Não tem autor. Vemos o acaso em curso, ou a ironia tão bem casada àquele estado de elevação e alienação geral, ao show da fé. É o que pavimenta o discurso de homens como Elmer, o que santifica mulheres como Sharon.
Pois das cinzas, cremos, nasce outro homem. Elmer nunca poderá estar acima de Sharon. Ela sempre foi seu instrumento para chegar lá. Torna-se lenda ao ser consumida pelas labaredas que colocou seu sonhado templo abaixo. Nesse mundo de presépios em bares e imagens de Maria e Cristo em prostíbulos, o falso herói de Brooks, como um saltimbanco, só tem a estrada para contentá-lo, para, a cada parada, ser o que bem quiser.
(Elmer Gantry, Richard Brooks, 1960)
Nota: ★★★★☆
Veja também:
Adeus, Minha Concubina, de Chen Kaige
Que lindeza de resenha. Um belo feito literário, a altura da obra em questão.
Obrigado! Abraços!