Na Cova da Serpente, de Anatole Litvak

Os homens são equilibrados, certinhos, as mulheres são histéricas. Alguém deverá lembrar que Na Cova da Serpente é um filme ambientado em um hospital psiquiátrico para mulheres e, por isso, não poderia ser diferente. Ainda assim a disparidade incomoda.

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Os homens são chatos de tão quadrados, de tão falsos, a começar pelo médico que cuida da protagonista, interpretado por Leo Genn. É quem persegue o equilíbrio, que pretende nos entregar a normalidade, e que sempre termina por sabotá-la. É quem deverá explicar, em seus lances freudianos, em sua calma maçante, os problemas da mulher.

Com os homens feitos para salvar ou servir de voz àquilo que precisamos compreender sobre personagens femininas conflituosas, enxergamos um filme mofado, quase misógino. Cansamos do médico de publicidade, todo reto, encarnado pelo doutor Mark Kik (Genn) e do marido sempre presente, que precisa salvar a mulher, vivido por Mark Stevens.

A dicotomia adotada pelo diretor Anatole Litvak, com roteiro de Frank Partos e Millen Brand, a partir da obra de Mary Jane Ward, mostra-nos o que pertence ao mundo de corredores frios e sessões de eletrochoque e o que promove, do lado de fora dos muros, um esperado e aguardado alívio, libertação da loucura.

Para dentro, as mulheres. Sempre elas. A começar pela protagonista Virginia Stuart Cunningham, interpretada com garra por Olivia de Havilland. Se o visual ainda entrega a forma do cinema clássico – a despeito da abertura, em que a mulher está em espaços abertos e ouve as vozes de sua mente -, a interpretação da atriz demole o glamour da estrela.

Pode ser um passo importante, quase natural, ao cinema moderno. A senhora de Havilland esforça-se para ser alguém “comum”, sem retoques, em alguns momentos feia – e maltratada – para nos convencer das consequências do que viveu, do desequilíbrio constante à jornada entre mergulhos na tempestade e retornos aos dias de sol.

Quando criança, Virginia não teve da mãe o amor que esperava; ao partir para o pai e perceber que este estava inclinado a ficar ao lado da mãe, desejou sua anulação, seu desaparecimento. Quando o pai morre, a criança – depois a mulher adulta – encontra-se atolada na culpa, o que sabota todos seus relacionamentos futuros.

A protagonista é apaixonada pelo próprio pai, ainda que o filme não diga com exatidão. Nos outros homens, tentou encontrar um substituto. De Jacques Tourneur a Samuel Fuller, passando por Alfred Hitchcock, a psicanálise tem dificuldade para ganhar terreno nessa Hollywood que busca representá-la através de construções visuais interessantes.

É o que ocorre no momento em que Virginia fala do tratamento com serpentes. A câmera, em seguida, toma distância da atriz, sobe e revela o buraco em que está colocada, ao lado de todas aquelas mulheres perturbadas e presas aos próprios corpos. O hospital nunca é um ambiente agradável. O filme é corajoso e denuncia o tratamento com eletrochoque.

Virginia luta para enxergar quem realmente é. Sua mente anula seu passado. Ela não reconhece mais o marido. Os esforços do médico – por quem termina apaixonada – permitem que ela retorne à infância. O filme, ao abarcar o desfecho desejado, indica que o melhor caminho é o da psicoterapia. Enxergar a si mesmo, desatar os nós.

Na melhor cena do filme, Jan Clayton canta “Goin’ Home” durante o baile. A câmera sobrevoa a pista de dança. Vai e volta. Os corpos param de se movimentar. Todos cantam o desejo de ir embora, sem saber como sair dali. O clima alegre dá lugar à melancolia. De repente, pela música, todos descobrem viver o mesmo problema.

(The Snake Pit, Anatole Litvak, 1948)

Nota: ★★★☆☆

Veja também:
The Souvenir, de Joanna Hogg

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