Cães de Aluguel, de Quentin Tarantino

O próprio Quentin Tarantino, com o papel que lhe cabe, o de um bandido entre outros em uma mesa de lanchonete, explica a metáfora da canção “Like a Virgin”, da cantora Madonna. Toma para si, nas primeiras linhas de seu primeiro longa-metragem, a explicação sobre uma peça da cultura pop – como se ali houvesse algo a mais.

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Amantes da “alta cultura” talvez não vejam nada de profundo em “Like a Virgin” ou em Cães de Aluguel, levados a subestimar o que é ligado ao pós-modernismo e a uma máquina industrial da qual, é verdade, sobram motivos para desconfiar.

O que faz Tarantino, na pele do passageiro senhor Brown, é reivindicar – em um formato cômico que permeia o diálogo dos criminosos – certa profundidade. E volta seu olhar ao produto que pode apenas rechear os sentidos com certo tom erótico, no caso da canção; ou, para ir além, no caso do filme, o produto que não se reduz à violência.

Talvez não. Cães de Aluguel, pequeno filme esperto ancorado em diálogos, em um roteiro que funciona à base de idas e vindas no tempo, desafia-nos a ver mais do que uma fita de assalto com trapaceiros e piadas a reboque.

É sobre um universo impessoal no qual todos são chamados por apelidos, cada um com uma cor. Um deles, o senhor Pink (Steve Buscemi), mais de uma vez pedirá que sejam profissionais, que não se matem em nome de algum rastro de camaradagem. O texto de Tarantino, sabemos desde cedo, não escapará a essa tendência clássica, quase como um faroeste: os homens ainda estão à frente do dinheiro, sob um velho código de conduta.

Cães de Aluguel, entre tiros e diálogos ágeis, leva a um círculo de bandidos do qual ainda sai algum gesto inesperado, terno, até mesmo à beira do amor: o momento em que um dos criminosos aproxima-se de outro para segurá-lo nos braços e lhe fornecer algum consolo antes da morte, enquanto ambos se veem encharcados de sangue.

A aproximação surge estranha. Em um filme no qual os homens tratam-se por apelidos, por cores, vemos um gesto deslocado. Por ali, alguns servem apenas para destruir, dar ensejo à violência. Fazer surgir um torturador, que chega ao esconderijo tomando refrigerante e tem um policial preso no porta-malas, é um golpe narrativo equivalente à aparição, em Pulp Fiction, do louco mascarado.

Tarantino não tem qualquer problema em abrir portas e oferecer horror gratuito, mesclá-lo à trilha sonora de seu universo pop e jogar o sorriso do mesmo torturador (Michael Madsen) como contraponto ao desespero do policial (Kirk Baltz), prestes a ter sua orelha arrancada. Tarantino sabe como representar na tela essas emoções, como saturá-las, antes, pelos diálogos. O horror liga-se à palavra.

Os bandidos preparam-se para assaltar uma joalheria e, desde os primeiros instantes, com os gritos do senhor Orange (Tim Roth) no branco de trás do carro, coberto de sangue, descobrimos que o assalto não correu bem. Os bandidos voltam a se encontrar em um galpão, onde tentam descobrir quem é o traidor entre eles.

Típica situação de filme de assalto, como em O Grande Golpe. O crime, contudo, nunca é mostrado: em seu texto esperto e veloz, Tarantino deixa lacunas. Se por um lado embarcamos com facilidade, por outro não é possível se agarrar demais às personagens.

Em certo sentido, e apesar da grandeza das imagens no espaço interno e do inegável domínio de direção, Cães de Aluguel é um filme amador, apressado, que escancara sua forma ao sacar, a cada instante, um momento-chave, uma aparição relâmpago, como se unisse suas peças à força, em um mesmo palco, soando artificial.

Ao recorrer a uma conversa de criminosos sobre uma música de Madonna ou, em Pulp Fiction, sobre lanches do McDonald’s, Tarantino eleva a brincadeira. O universo em questão é o dos bandidos que pouco a pouco revelam identidades, humanos por trás das cores, gente que brada pelo profissionalismo e termina abraçada ao companheiro quase morto.

(Reservoir Dogs, Quentin Tarantino, 1992)

Nota: ★★★☆☆

Veja também:
Era Uma Vez em… Hollywood, de Quentin Tarantino

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