Da primeira parte, dos primeiros 20 minutos ou pouco mais, antes dos créditos, fica o máximo do drama e da dor: o momento em que mãe e pai assistem à morte da filha que acaba de nascer. O parto é visto como instantes de sofrimento, espera interminável, alternância entre cômodos e alívio logo interrompido, quando a bebê não respira mais.
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O diretor Kornél Mundruczó, com tal prólogo, rompe sua primeira ponte: essa é a história de um casamento que desaba, de homem e mulher que não conseguem mais viver juntos sob o peso da perda do recém-nascido. O filme só realmente começa, parece dizer o cineasta, no momento em que a perda é consumada, quando os pedaços tornam-se visíveis.
Os conflitos diretos no decorrer de Pieces of a Woman não dão conta de explicar com exatidão o que se passa na vida de Martha (Vanessa Kirby) e Sean (Shia LaBeouf). Com roteiro de Kata Wéber, Mundruczó aposta em momentos aparentemente aleatórios, conversas jogadas ao vento, fissuras nas quais o drama acha seu espaço.
A câmera percorre ambientes sem procurar um ponto definitivo, sem fixar para nós uma misè-en-scéne como arena para o embate de diálogos; ao contrário, vaga lentamente pelas salas, pelos rostos, pelas conversas que tentam maquiar o que de verdade consome essas pessoas em fogo lento, suficiente para separá-las.
Nenhuma sequência exemplifica isso tão bem quanto a do encontro da família na casa da mãe de Martha, interpretada pela veterana Ellen Burstyn. O assunto está ali sem aparecer. Os convidados falam de outras coisas sem que deixem perceber, até certa altura, que a perda da criança é o que move suas dores e vidas, o que levou àquele encontro.
Martha percebe o mal-estar entre essas pessoas, o que parece dar significado, agora, à família reunida na casa de aparência aconchegante, com neve do lado de fora. Mundruczó oferece-nos o mal de bandeja sem que o percebamos, e nos faz compreender que a única pessoa capaz de encerrá-lo é também a mãe que perdeu a filha na hora do parto.
A família configura-se, sobretudo na imagem de Burstyn, aos efeitos do ressentimento, da busca por justiça a qualquer custo. Logo saca uma advogada; ironicamente, a mesma se torna amante de Sean, sexo passageiro, fuga para o homem que pretende entender – e não consegue – o que aconteceu com sua própria vida e com a de sua mulher.
Quem deverá enfrentar o problema de frente, inclusive depor no tribunal, é a mãe. O pai, visivelmente exausto, toma um avião e vai embora. A ponte que se constrói sobre um rio – na qual ele mesmo trabalhava, a salientar sua forma rústica – aos poucos tem seus lados aproximados, mês a mês, representação das pontas que Martha deve unir.
A representação parece óbvia demais. O filme de Mundruczó tem momentos irritantes, quer nos fazer compreender o real lugar da dor e o gesto nobre de quem pode perdoar o outro, a parteira que parece ser, como todos, vítima de algo inexplicável. Chega-se a um ponto em que não é mais possível encontrar justificativas, apenas aceitar.
O encerramento é estranho, forçado, mais parece uma maneira de acalmar o público, o epílogo de outro filme. Um filho substitui outro? Ao que parece, trata-se de dar o remédio rápido – pelo golpe narrativo – contra a tão prolongada dor.
Dois diálogos ajudam a entender Pieces of a Woman. São complementares. No primeiro, Sean e Martha ouvem de um médico que só foi possível determinar que o bebê “estava com falta de oxigenação” e que “em 60% a 70% desses casos, é difícil achar uma explicação aceitável” para a morte. Em outro momento, Sean conta para sua amante a história de uma grande ponte que desabou em 1940. Os motivos do desastre não conseguiam ser explicados por especialistas, “até que um dos cientistas disse ‘ressonância’”. Como se vê, é possível explicar a queda de uma ponte, nem sempre a morte de um recém-nascido.
(Idem, Kornél Mundruczó, 2020)
Nota: ★★★☆☆
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