Nova York amedronta as meninas que saíram da Pensilvânia, onde moram, para uma missão inglória, sozinhas, a bordo de um ônibus: uma delas escolheu abortar. O que não pode ser feito em uma região dos Estados Unidos pode em outra. Do necessário deslocamento nascem duas nações em uma em Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre.
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A primeira conduz-nos à aparência do passado, anos 1980, à pequena cidade cujas famílias juntam-se no anfiteatro da escola para assistir aos rebentos em apresentações culturais. Alguns dançam, outros imitam cantores famosos. Autumn (Sidney Flanigan) escolhe levar apenas o violão ao palco, com a voz que se esforça para encontrar eco.
A imagem granulada, escurecida, ajuda a compreender seu desespero, que cresce mais e mais. Enquanto ela canta, da plateia um rapaz grita “vagabunda”. O mal-estar é cortante, o que retira qualquer possibilidade de um suposto passado nostálgico. A diretora Eliza Hittman leva-nos à dura realidade imposta pela ótica masculina: não há espaço para que as mulheres respondam, menos ainda para que o menino seja punido.
O público do anfiteatro aceita o xingamento como se nada ecoasse, o que dá o tom desse filme forte: ao longo da viagem, dos dias em claro à espera do aborto que decidiu realizar, Autumn segue quase silenciada – inclusive quando tem de responder ao questionário da funcionária do serviço de saúde sobre suas experiências sexuais.
As lágrimas são sinceras, surgem aos poucos; compreendemos tudo e nada: ao que parece, no alto de seus 17 anos, ela viveu muito – não o suficiente para amadurecer, mas o suficiente para ter um filho e, na companhia da prima, estar postada em um ônibus para buscar a saída possível às meninas grávidas e impossibilitadas de criar uma criança.
Hittman defende o aborto sem que deixe de mostrar o inferno que cerca a vida de quem o escolhe, principalmente a da adolescente. Natural, portanto, que a cidade grande seja vista como deve ser, de brilho assustador, frieza constante, vidros, concreto, paredes metálicas, metrôs lotados de seres indiferentes ao próprio movimento.
A clínica está em uma porta como outra, entre tantas dos grandes prédios, em grandes avenidas preenchidas por táxis amarelos e uma massa com pressa. Autumn pensava que podia resolver seu problema com mais agilidade. O que deveria ser a viagem de um dia estende-se a três – sem local para dormir, sem disposição para descansar.
A cineasta acerta ao conceber o drama a conta-gotas. Cabe a nós encontrar a verdadeira Autumn, viver com ela seus instantes de espera, o tempo das dores femininas e, na pior parte da história, as perguntas que é obrigada a responder. O título refere-se ao questionário da clínica na qual ela fará o aborto; é preciso assinalar, a partir das perguntas, o que “nunca” faz, ou o que faz “raramente”, “às vezes”, “sempre”.
Título que nos faz pensar na dificuldade da protagonista verbalizar o que sente, o que, não por acaso, coincide com suas lágrimas, com o momento mais forte. Há situações que talvez não possam ser enquadradas em uma das quatro opções colocadas. A aparente paralisia de Autumn permite que enxerguemos a ebulição de sentimentos.
Através de seu olhar reservado, de quem continua a cantar após ser chamada de “vagabunda” na frente de todos, de quem evita falar o que sente, é possível levantar questões. Há, por exemplo, o mal-estar relacionado ao padrasto, que elogia a menina a pedido da mãe; depois, Autumn será vista observando esse homem em sua casa, além do momento em que ele, aos olhos dela, acaricia uma cachorra como se acariciasse uma mulher.
Teria abusado da enteada? Seus segredos seguirão guardados. Suas expressões são enigmáticas. Com frequência prefere observar. Seguimos com sua face – no ônibus, nas ruas, na sala da funcionária que lhe lança perguntas difíceis, na mesa de cirurgia com a médica que precisa ouvir de sua boca qual procedimento médico escolheu realizar.
(Never Rarely Sometimes Always, Eliza Hittman, 2020)
Nota: ★★★★☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

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