Brazil: O Filme, de Terry Gilliam

As explosões sucedidas por papéis ao vento geram alívio imediato. São os papéis – documentos, ordens, despachos, certidões, mandados – do Estado burocrático que devora a si mesmo, a começar pelos homens que caminham por seus corredores, suas entranhas, labirintos banhados ao cinza, pelos homens que seguem seus chefes.

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Um Estado – em prédios, repartições, escritórios, salas minúsculas equipadas com computadores que mais parecem extensões de máquinas de escrever, com telas distorcidas – que persegue quem não aceita viver em seu centro nervoso, na linha estabelecida, e que pode matar alguém, por acidente, quando a letra errada é grafada em um documento.

É o suficiente, em Brazil: O Filme, para que um inocente tenha a casa invadida, à noite, por soldados e uma figura sinistra semelhante aos detetives dos filmes noir. Documento em mãos, claro, para que a mulher do preso assine – enquanto este é colocado em um saco, depois levado a interrogatório e, dessa vez não por acidente, torturado até a morte.

O diretor Terry Gilliam oferece aproximações às famosas distopias enquanto persegue a comédia de absurdos, o que nos faz pensar em sua incursão pelo Monty Python. Seu Estado totalitário tem algo diferente: desde o início são revelados seus erros, a insistência na idiotia que não o permite enxergar o que parece óbvio, trancado como está.

Alguns fizeram relações com Kafka. Outros evocaram Orwell. Brazil, a começar pelo título, destoa de todos enquanto deixa semelhanças. Seu universo sem sol, sem natureza, é embalado pela falsidade dos cenários. Não esconde fraquezas, a aparência de que tudo está prestes a vir abaixo, com tubulações que cortam paredes como serpentes gigantes, com prédios escuros nos quais cada ser humano busca seu próprio covil.

A aventura do homem ao centro não é necessariamente contra o Estado, mas por causa deste. Ele, Sam Lowry (Jonathan Pryce), sonha ser um guerreiro de asas grandes e corpo metálico, a viver no céu de nuvens brancas, a flertar com a imagem da bela mulher que aguarda ser salva. Quanto mais a persegue, mais se percebe empurrado ao inferno.

Lowry reconhece a ratoeira na qual se encontra. Sabe das engrenagens falhas e de todos os idiotas que o circundam, das ordens maçantes, dos intermináveis andares do grande prédio cortado pelo elevador que, para ele, justamente para ele, insiste em não funcionar. Gilliam brinca com esse túmulo sujo, moderno, nova casa para a humanidade.

Brazil é uma ideia de paraíso inalcançável, verde sem-fim ao qual é lançado o homem que ousou, na crença de sua batalha contra o Estado, ser mais que um número. Na verdade, todos se enganam: enquanto o chefe está dentro da sala, os subalternos assistem a qualquer filme escapista; quando o chefe resolve vigiar, desconfiado, todos fingem trabalhar.

É a súmula do sistema, diz Gilliam: os homens tornaram-se grandes fingidores à sombra do tão citado Estado sem rosto ou corpo, desse Grande Irmão que, no caso de Brazil, sequer tem uma face para estampar nas teletelas espalhadas pelas máquinas, nas televisões à venda na vitrine destruída, na abertura, pela ação de um suposto grupo terrorista.

Ao que parece, Lowry não tem nada a fazer senão sonhar – seja por vontade própria, seja por imposição do inimigo. Em seus delírios, a papelada pode ganhar vida, tomar o corpo – enrolá-lo, afogá-lo – da personagem de Robert De Niro, espécie de espião que diz estar impossibilitado de servir ao Estado por causa de seus códigos e ordens.

A imprensa fala de bombas plantadas. Não é possível confiar em nada. Nas ilusões do pequeno herói, nem seu espelho ao contrário – o glorioso anjo metálico – escapará dos miseráveis que se amontoam entre as estruturas que brotam da terra, os corredores que ocultam a luz – visual que nos remete à Roma de Fellini em Satyricon.

Para Pauline Kael, “o título refere-se ao escapismo pop do passado – o que apenas podemos sonhar da miséria e esporádica violência terrorista de um estado policial anglo-americano ‘em algum ponto do século 20’”. Passado do qual depende a personagem central, semelhante ao rapaz alienado de Metrópolis, em busca de sua musa revolucionária.

Não é de estranhar que televisão ligada diverte com algum filme dos Irmãos Marx, e que outros clássicos de Hollywood servem de alimento aos engravatados arquivistas. O mundo criado por Gilliam deve algo a esse cinema de sonho, possível em certa época perdida: é, dessa vez como pesadelo, o mais perfeito invólucro da falsidade.

(Brazil, Terry Gilliam, 1985)

Nota: ★★★★☆

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