A textura da película contribui à impressão de tempo passado: aos nossos olhos, é como se a memória – a da diretora Joanna Hogg, em material autobiográfico – estivesse sempre perto de se decompor. Exercício de difícil retorno, de acesso dolorido, a dias de mal-estar.
The Souvenir foi filmado em 16mm. Passa-se nos anos 1980 e detém, em alguns bons momentos com mais de três pessoas em cena, conversas sobre tudo e sobre nada, gente que se deixa captar pela câmera ao natural, que vive o momento. A imagem detém a jovem Julie (Honor Swinton Byrne), futura cineasta e protagonista.
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Contudo, seria o caso de inverter esse jogo: antes, é ela que detém a câmera. Nesse caso, a fotográfica. O filme de Hogg abre com fotos em preto e branco de um espaço distante da realidade de Julie, onde pretende desenvolver sua primeira história para o cinema: um filme sobre uma criança de bairro proletário, prestes a perder a mãe.
As imagens espelham seu íntimo: a granulação não evita que se encontre sensibilidade, composições ásperas, ao mesmo tempo ternas, algo bruto para alguém tão jovem – ou tão jovem às aparências. Ao contrário dela, o namorado Anthony (Tom Burke) parece mais velho e mesmo mais forte do que realmente é: o homem conhecedor do mundo.
Hogg fala por Julie, põe na tela suas dores e dúvidas, também sua maior batalha: o relacionamento com um viciado em heroína. Não bastasse o jeito debochado, Anthony entrega-se à droga e fica ainda pior. Sua fraqueza vem por explosões, pela dor insuportável de alguém que se machuca e, aprisionado a si mesmo, agarra-se ao travesseiro e se contorce. À assustada Julie, acordada no meio da noite, resta sofrer enquanto o observa.
A moça ama e, até certa altura, tenta conviver com Anthony, seu vício e suas inconstâncias. Impossível prever o dia a dia, o que vem a seguir. Sua forma de porcelana e expressão inocente – aspecto visual outra vez ajudado pelo véu que a película lança à tela – chocam-se com a nova experiência. A realidade cobra-lhe um preço alto.
O cinema dá corpo a esse rompimento: talvez seja necessário contar histórias que conhecemos, histórias que cortam nossas vidas, com pessoas que entram sem pedir licença. Entender o que faz Julie amar Anthony é, ao que parece, impossível. A textura de The Souvenir fala-nos também de algo misterioso, até mesmo aterrorizante.
Um filme de detalhes, de objetos, de presentes. O título refere-se à pintura do francês Jean-Honoré Fragonard, aqui apresentada: Anthony observa que a menina da tela – tão frágil, tão jovem, como Julie – escreve o nome de seu amante na árvore após receber dele uma carta. Ao lado dela, um cão; na composição, a árvore recobre a garota como vapor, como se a protegesse, tornando-a parte daquela natureza. O quadro acalenta.
A protagonista, em caminho oposto, separa-se de seu espaço ou de tudo o que lhe remetia à segurança, à vida da menina abastada que sonhava cursar cinema. Na imagem refletida por dois espelhos colados à parede de seu apartamento, vemos, mais de uma vez, uma leve deformação. Em perdição e descontrole, Anthony quebra o espelho.
Em crítica para The Guardian, Peter Bradshaw descreve The Souvenir como “um filme realista social sobre pessoas elegantes. É como se Hogg tivesse encontrado uma resposta inglesa contemporânea à retórica de Antonioni ou Visconti”. Seria essa resposta a libertação da protagonista, para além da imobilidade do relacionamento e da pintura?
De Antonioni, A Noite, ou O Eclipse; de Visconti, certamente Violência e Paixão. Ao encarar a câmera, perto do encerramento, Julie encontra espaço para olhar, sua autonomia, sua constituição, a consciência de que a história agora lhe pertence. Encara-nos após permitir que penetrássemos, ao longo de duas horas, importante período de sua vida.
(Idem, Joanna Hogg, 2019)
Nota: ★★★★☆
AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

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