O Som do Silêncio, de Darius Marder

O corpo de Ruben (Riz Ahmed) pede silêncio. Sua primeira aparição expõe seu universo, sua transpiração, sua agressividade descontada nas baquetas. Uma delas, do palco, é lançada para o público. Ele toca bateria, sua companheira canta. A música ajuda a compreender, ainda no início, esse “som do metal”, ruído em sua própria organização.

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Não se trata, nem de longe, de desmerecer a predileção musical. Ao contrário, ela explica perfeitamente quem é o protagonista de O Som do Silêncio e por que a quietude do retiro, depois que ele descobre estar perdendo a audição, não lhe serve. Há de se passar para outro lado, aceitar o aparente vazio, o universo como vácuo de sinais distantes.

O roqueiro tem o corpo coberto por tatuagens, cabelo parcialmente pintado, músculos saltados e alimentados pelo esforço físico em seu próprio trailer, sua casa, sua sala de música e veículo com o qual, na companhia da amada, Lou (Olivia Cooke), viaja pelos Estados Unidos fazendo shows. Cada dia uma cidade, ao som estridente da própria vida.

Ao passar a mão em alguns discos, em uma de suas paradas, em loja frequentada pelas tribos que ouvem suas músicas, Ruben percebe algo diferente: o som do mundo ao redor é desligado. Sua cabeça – estamos em seu interior, ainda que a imagem mantenha-nos fora – assemelha-se agora a uma lata vazia. O som está distante.

Em desespero, ele procura uma farmácia; em seguida, um médico. Os testes não deixam mentir: ele está ficando surdo. O que poderia ser o golpe dramático a fornecer tantas escapadas fáceis é desviado pelo diretor e roteirista Darius Marder: o problema a ser resolvido é, primeiro, o do homem com o homem, o da adaptação ao aparente vazio.

Ruben é internado em uma clínica de surdos com regras próprias; seu líder avisa que ali a deficiência não está para ser superada, mas para ser aceita. Em cenas como a da refeição, o som chega apenas a nós; em seguida, é cortado. Nessa transição, alternamos entre “dentro” e “fora”, na pele de Ruben e na posição da câmera que busca o plano aberto. É apenas um exemplo das possibilidades do uso do som que esse belo filme oferece.

A dificuldade do músico é se adaptar a uma nova linguagem: viver sem ouvir, guiar-se pelos olhos, perceber a sensibilidade das coisas – e de todos – por outro sentido. Ao mesmo tempo, nada satisfaz por completo o rapaz que quer a antiga vida de volta: a companheira agora distante, o trailer que vendeu para pagar a cirurgia de implante do aparelho auditivo, as estradas e o mundo rock’n’roll que teve de deixar por causa da surdez.

É visto com frequência gritando ou esmurrando o que há ao lado. A certa altura, o líder do retiro pede que ele fique trancado em um quarto, sozinho, apenas com um caderno à frente. A lição é a seguinte: Ruben terá de lidar com o silêncio e a aparente solidão aos quais foi lançado, lidar com si mesmo, com a ausência da transpiração, perceber-se só.

O diretor conduz-nos à ideia que só se concretiza nos últimos instantes – o que não vale revelar. Basta dizer que o herói em questão – alguém que se expressava pelas baquetas, com um público para ouvir e fazer ouvir – precisa encontrar seu próprio recanto, seu próprio espírito, sem que passe pela presença de um deus.

É necessário se reinventar. Ou mais: aceitar o aparente vazio que o recobre, em algum lugar distante, no velho continente ao qual teve de viajar para reencontrar a amada. Olhar para o alto, para a luz que atravessa os galhos da árvore, e perceber o quanto precisamos se desligar dos sons que se tornaram ruídos eletrônicos, e o quanto estes incomodam.

(Sound of Metal, Darius Marder, 2019)

Nota: ★★★★☆

Veja também:
O Quarto do Filho, de Nanni Moretti

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