Teatro de amor e morte em dois filmes de Marcel Carné

Os corações ainda pulsam no interior das estátuas de Os Visitantes da Noite. No decorrer dessa história passada no século 15, o Diabo e seus súditos tentam, em vão, duelar com o amor. Pregam peças, como se já soubessem de tudo, e terminam vítimas das mesmas no grande castelo, em seus jardins, nos campos floridos ao redor.

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O filme de Marcel Carné, lançado em 1942, carece de vida: suas personagens sobrevivem em um teatro sem fim, local de frases decoradas e cansativas. São, desde o início, estátuas. Nem por isso o prazer esvai-se facilmente: Carné coloca-nos nos domínios da lenda.

Pouco depois, com o monumental O Boulevard do Crime, dividido em duas partes (ou épocas), vemos o caminho contrário: os demônios vivem no mundo real, foram criados pela contradição que faz do criminoso também o autor das peças, e todos estão juntos na rua abarrotada de vida, no início, em magnífico plano geral.

Por ali, a personagem de Jean-Louis Barrault nada fala e pouco se movimenta em sua primeira aparição. É justamente uma estátua, um “retardado”, como diz o guia do show, ou um “sonâmbulo”: ele interpreta a irrealidade que cabe ao teatro, no qual o mesmo Carné mergulha de corpo e alma em seu Os Visitantes da Noite.

São filmes presos a universos distintos, de visuais semelhantes, filmes de poesia na fala, na articulação das personagens, que não escondem a falsidade das figuras em cena, em figurinos e cabelos exagerados, na maquiagem à vista, em rostos angelicais – ou em oposição, claro – para dar vez ao que se cunhou “realismo mágico”.

Pois há em ambos alguma dose de realismo, sobretudo em Boulevard. Analisar esses filmes é perceber a intrusão da mágica entre seres em certa medida palpáveis, de rostos desesperados, na “estátua” que, ao povo e à rua, ganha vida nas formas inesquecíveis do citado Barrault. Todos (ou quase) vivem pelo amor e sofrem por ele em ambos os filmes.

Nem o Diabo escapa. Em Os Visitantes da Noite, seus filhos, dois anjos um pouco malvados, são enviados ao castelo de um barão para devolver o problema – um pouco de trabalho ao carrasco que, sem muito a fazer, está pescando – ao mundo em equilíbrio. A paz reinante incomoda a treva. A mágica ganha espaço.

Logo esses seres tomam o lugar dos amantes. Entretêm os poderosos, que insistem em lançar moedas aos pobres, aos artistas mambembes. Anões de rostos deformados, por isso escondidos, correm por ali; surgem os sinais desse mundo endiabrado em que homens confundem-se com crianças, em que a interpretação tem algo infantil.

No fundo, toda paixão em excesso tem seu lado bobo: as obras de Carné, com os roteiros de Jacques Prévert, falam de amor no período da ocupação alemã na França, durante a Segunda Guerra, o que reforça a ideia de escapismo. A fuga como necessidade. O duelo do amor e da morte, o teatro que resulta desse embate sem que o cinema seja apequenado.

Em Boulevard, o criminoso François (Marcel Herrand) declara guerra à sociedade: como deixa claro à personagem de Arletty, cansou de viver de joelhos. Prefere a forca, como se antecipasse o próprio destino – como algumas criações trágicas do mesmo Carné, da década anterior, em obras extraordinárias como Cais das Sombras.

Ao contrário da maioria – em Visitantes ou Boulevard -, François diz não amar ninguém. É fruto verdadeiro da massa posta no início, a mesma que esmaga Baptiste (Barrault) à medida que grita pela amada, Garance (Arletty), no encerramento. Antes estátua em apresentação, o mímico triste esconde sentimentos verdadeiros.

A rua antecede o teatro. Ali, Garance e François espreitam um homem rico. Após ter o relógio furtado, ele culpa a mulher. O mímico, como nós, sabe de sua inocência. É o único que viu o crime, justamente alguém submisso ao palco, à interpretação.

A partir dessa cena, Carné oferece o essencial sobre Boulevard, também sobre Visitantes: recorre-se ao efeito mágico para explicar o mundo real. O que há de violento e banal e pertence ao plano dos homens será polido – ou transcrito – pelo corpo. Na história dos demônios que descem ao plano físico para desestabilizar o reino dos homens é preciso trocar os atores pelos anjos, a interpretação que traduz pelo truque que bagunça.

São filmes diferentes que se aproximam pela forma artificial – nem por isso menor – de suas personagens. É fácil invadi-las, entender o que fazem nesse tabuleiro em que homens fingem ser deuses ao público boçal, aos gritos, na mesma medida em que os bastidores não ajudam muito: todos, ao que tudo indica, estão próximos de explodir.

Em Visitantes, as figuras vivas de Carné não resistem aos instintos. Os demônios concedem apenas alguns empurrões. Elas declaram amor até o ponto em que cansam, em que se projetam como as estátuas que em breve servem de enfeite ao jardim no qual o filme termina, sem expor o lado carnal à vista, felizmente, em Boulevard.

A melhor definição dos traços de Carné pertence ao crítico e historiador Georges Sadoul, ao se referir às obras do diretor lançadas antes de 1948: “O seu universo, tal como o de Prévert, é um teatro onde se defrontam o Bem e o Mal. Os seus heróis, muitas vezes interpretados por Gabin, são gente boa que a sociedade tornou criminosos, e nunca bandidos profissionais, pintados por ele como canalhas. Sonham com a possibilidade de um amor eterno, lutando contra o destino, muitas vezes simbolizado por um dos protagonistas, mas também pelo próprio décor. Esta fatalidade é decididamente uma expressão da ordem social”.

O teatro do Bem e do Mal, em Boulevard, ora ou outra cede espaço ao homem contra a multidão, aos desesperados e reais que brigam (de verdade) sobre o palco, aos trapaceiros que fingem ser cegos e, em alguns casos, que recusam o amor e a miséria. Perto deles, o Diabo sorridente de Visitantes é um rascunho fácil e até esquecível.

(Les visiteurs du soir, Marcel Carné, 1942)
(Les enfants du paradis, Marcel Carné, 1945)

Notas:
Os Visitantes da Noite: ★★★☆☆
O Boulevard do Crime: ★★★★★⤴

Foto do cabeçalho: O Boulevard do Crime

Veja também:
O emocionante discurso final de O Grande Ditador

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