Alguns grandes filmes de ação pouco ou nada precisam explicar suas personagens; o universo em questão e os elementos secundários encarregam-se do feito. Há casos de filmes que sequer recorrem a seres com profundidade dramática, com o psicologismo que serve para nos lança ao interior dos mesmos, para sentirmos o que eles sentem.
Dois exemplos interessantes: em Meu Ódio Será Sua Herança, as doses de violência são entrecortadas pela camaradagem dos pistoleiros; em Mad Max: Estrada da Fúria, a vingança da personagem de Charlize Theron é explicada pelas outras meninas ao lado. São filmes com mágica própria, até difíceis de explicar. Entendemos e torcemos por seus anti-heróis.
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No recente Tenet ocorre o oposto: o movimento e a transpiração estão isolados, são incapazes de nos saciar. Não há uma personagem para seguir e para nos envolver. Christopher Nolan outra vez coloca uma boa ideia a serviço do vazio.
Em cena o tempo todo, ou quase, John David Washington não tem tempo nem para ter um nome. Em um filme sobre o tempo, ou sobre seu controle, eis um paradoxo, uma ironia possível. Eis um agente secreto, eis um grande plano para destruir o mundo, eis as raízes da Guerra Fria revividas a partir desse material valioso, impalpável, que é o tempo.
Nem água nem petróleo. O futuro já foi dado: o homem não deu certo, o mundo todo espatifou. Fingindo não ser um 007 enquanto o é, o agente precisa encontrar o bandido (Kenneth Branagh) por trás do poder de reverter o tempo, ou simplesmente fazer o universo correr ao contrário: balas que voltam à arma, carros que se deslocam para trás.
O filme segue a cartilha de Nolan ao impor inúmeros pontos de virada. Segue a ideia de que a ação – somente ela – é capaz de justificar o cinemão que lança aviões contra prédios, que explode prédios e depois os ergue, que põe um teatro inteiro para dormir enquanto homens digladiam entre poltronas. Tenta nos fazer acreditar, outra vez, que tudo serve apenas a uma boa ideia enquanto serve, verdade seja dita, à necessidade de movimento.
Nolan retorna aos seus piores dias, aos vícios de O Cavaleiro das Trevas Ressurge e A Origem. Diretor que alimenta o espetáculo fácil, ainda que, não se negue, tenha conquistado bons resultados – em sua faceta adulta – com Dunkirk e Amnésia. Do último, toma a ideia do tempo reverso, dessa vez à beira da ficção científica e com mais recursos.
O realizador não tem limites. Seus agentes escalam prédios como se brincassem, emparelham grandes veículos em uma rodovia como se todos aqueles grandes veículos estivessem à altura do desejo juvenil, montanha-russa que sempre leva ao mesmíssimo lugar. Em sua faceta adolescente, para impressionar os impressionáveis, entrega algo raso como Tenet.
A exemplo de A Origem, o diretor tenta inserir uma história humana envolvendo uma mulher e seu filho pequeno. Antes havia Leonardo DiCaprio e a esposa perturbada, a família desfeita; agora há a mãe que corre o risco de perder o filho, personagem secundária que se aproxima do protagonista, por sua vez interessado nos lances do marido dela, o vilão.
O drama não se sustenta. A moça que Nolan quer tornar mulher experiente, interpretada por Elizabeth Debicki, é apenas uma bonequinha para o herói salvar, como se ainda lhe restassem sentimentos. Entre ela e o mundo todo, ele crê no poder de salvar ambos.
Alguns coadjuvantes, outra vez a exemplo de A Origem, existem para explicar a fórmula complexa que corre aos olhos: primeiro Clémence Poésy, depois Robert Pattinson, entre outros. O herói, a certa altura, embarca em uma espécie de máquina do tempo e assiste ao movimento contrário das coisas: os pássaros e as ondas retornam, ele não.
Ainda sobre alguns grandes filmes de ação: a despeito da correria, das balas e dos golpes, tem-se o que costumamos chamar de alma, emoções dadas não raro por mínimas expressões humanas e todo um conjunto que funciona, que nos faz acreditar e nos leva a embarcar na proposta. Às vezes por uma piscadela. Nolan não tem personagens com musculatura e, com o que lhe sobra, suas imagens evaporam rapidamente. O cineasta renuncia à alma.
(Idem, Christopher Nolan, 2020.)
Nota: ★☆☆☆☆
AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

Veja também:
2001: Uma Odisseia no Espaço, segundo Roman Polanski