Eu queria fazer um filme que não fosse uma narrativa de ação, mas um exame de personagem. Para isso, desejei um homem de muitos lados e muitos aspectos. Foi minha ideia mostrar que seis ou mais pessoas poderiam ter as mais amplas e divergentes opiniões quanto à natureza de uma única personalidade. Obviamente, tal noção não poderia ser elaborada se se aplicasse a um cidadão americano comum.
Eu imediatamente decidi que meu personagem (Charles Foster Kane) deveria ser um homem público – um homem extremamente público – extremamente importante…
Muitos filmes e novelas obedeceram rigorosamente à fórmula da “história de sucesso”. Desejei fazer algo bem diferente. Eu queria fazer um filme que pudesse ser chamado de “história de fracasso”. Eu não queria retratar um industrial cruel e talentoso, saindo de um simples lenhador ou condutor de bonde a uma posição de riqueza e destaque. (…) Minha história não era, portanto, sobre como um homem que ganha dinheiro, mas o que ele faz com seu dinheiro – não quando envelhece, mas ao longo de toda a sua carreira. O homem que tem dinheiro e não se preocupa em ganhar mais naturalmente deseja usá-lo para o exercício do poder…
A mais básica de todas as ideias era a de uma busca pelo verdadeiro significado das palavras finais, aparentemente sem sentido, desse homem. Kane foi criado sem família. Ele foi arrancado dos braços de sua mãe na infância. Seus pais eram um banco. Do ponto de vista de um psicólogo, meu personagem nunca havia feito o que se chama de “transferência” de sua mãe. Daí seu fracasso com suas esposas. Ao deixar isso claro no decorrer do filme, essa foi minha tentativa de levar os pensamentos de minha audiência para cada vez mais perto da solução do enigma de suas últimas palavras. Estas eram “Rosebud”. O dispositivo da imagem pede que um jornalista (que não conhecia Kane) entreviste pessoas que o conheceram muito bem. Ninguém nunca tinha ouvido falar de “Rosebud”. Na verdade, ao que parece, “Rosebud” é o nome comercial de um pequeno trenó barato com o qual Kane estava brincando no dia em que foi levado para longe de sua casa e de sua mãe. Em seu subconsciente, representava a simplicidade, o conforto, acima de tudo a falta de responsabilidade em seu lar, e também representava o amor de sua mãe, que Kane nunca perdeu.
Nas horas em que estava acordado, Kane certamente se esquecera do trenó e do nome que estava pintado nele. Os livros de casos de psiquiatras estão cheios dessas histórias. Era importante para mim, no filme, contar ao público da forma mais eficaz possível o que isso realmente significava. Obviamente, seria pouco dramático e decepcionante se um personagem arbitrário da história aparecesse com a informação. A melhor solução foi o próprio trenó. Agora, como esse trenó ainda poderia existir desde que foi construído, em 1880?
Era preciso que meu personagem fosse um colecionador, o tipo de homem que nunca joga nada fora. Eu queria usar como símbolo – na conclusão do filme – uma grande extensão de objetos – milhares e milhares de coisas, uma das quais é “Rosebud”. Esse campo de propriedades teatrais inanimadas eu queria para representar a própria pilha de poeira da vida de um homem. Eu queria que a câmera mostrasse coisas bonitas, coisas feias e coisas inúteis também – na verdade, tudo, que poderia representar uma carreira pública e uma vida privada. Eu queria objetos de arte, objetos de sentimento e apenas objetos simples. Não havia maneira de fazer isso, exceto tornar meu personagem, como já disse, um colecionador e dar a ele uma grande casa para guardar suas coleções. A própria casa me ocorreu como uma tradução literal em termos dramáticos da expressão “torre de marfim”. O protagonista da minha “história de fracasso” teve de se retirar de uma democracia que seu dinheiro não consegue comprar e seu poder não consegue controlar.
Existem dois retiros possíveis: a morte e o útero. A casa era o útero. Aqui também estava toda a grandeza, todo o despotismo, dos quais meu homem se viu carente no mundo exterior. Tal era sua propriedade – tal era o repositório óbvio de uma coleção grande o suficiente para incluir, sem forçar a credulidade do público, um pequeno brinquedo do passado morto de um grande homem.
Orson Welles, cineasta, em um comunicado à imprensa divulgado pela RKO Radio Pictures antes do lançamento do filme, em maio de 1941, retirado do site Wellesnet (“Orson Welles: The meaning of Rosebud in Citizen Kane“; leia aqui em inglês). Acima e abaixo, cenas de Cidadão Kane.
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Veja também:
O Outro Lado do Vento, de Orson Welles

Rosebud é a simplicidade e alegria do personagem.
Aquilo que o dinheiro não compra.
sao as inesquecíveis memorias da infancia
O mundo é cheio de nuances, que da cabeça de alguém como O. Wells, faz da imaginação um jogo A ser decifrado. Entender esse enigma, é a questão!
Orson era um gênio. Obrigado pelo comentário. Abraços.
O abandono da esposa ;abalou muito seu estado de espírito
rosebud é apenas o reencontro dele consigo mesmo, sua existencia humana real, o ser em si, o misterio fundamental do que é viver, existir, perguntas que fazemos a nós mesmos ao longo de toda a vida e não encontramos a resposta
Ótimos observações!
há algumas situaçoes no cinema e na literatura com aparentes analogias á vivida por KANE, como a procura de Travis durante 4 anos por sua PARIS-Texas no deserto de MOJAVE;, o assassinado de um cavalo pelo mujique em frente a Raskolnokoff quando era criança e ele nada fez diante de sua impotencia, fato que o atormentou ao longo da vida e o transformou num assassino;, a procura poetica de Cara de Bronze na Vereda do Sapal quando moribundo e mostrando ao Grivo como encontrá-la, ou seja, situaçoes proximas á terminalidade induzem a uma reflexão sobre o sentido da existencia sempre com relaçoes ´´a infancia
Interessantes relações. Valeu!
Rosebud eh o abandono, o amor que Kane nunca teve. Ele nao foi arrancado de sua mae. Sua mae planejou entrega-lo aos cuiadados do banco, ela diz que sua mala ja estava pronta ha uma semana quando o tutor vem busca-lo. Nenhuma mae que se digne entrega seu filho aos cuidados de um banco. Portanto ele foi abandonado pela mae. Quando adulto ele tentou comprar carinho durante toda a vida e achava que tinha conseguido com a sua ultima esposa, mas ela tambem o abandona e ele diz Rosebud nesta ocasiao, pois lembra-se do primeiro abandono, pela mae. Achei muito triste isso, um grande vazio na vida e quantas pessoas ricas ou pobres nao tem esse sentimento de abandono. O inicio do filme eh confuso e pensei parar de assistir, mas depois adquire um tom mais normal e gostei bastante, apesar de triste.
Interessantes observações. Obrigado pelo comentário!
Pensando aqui sobre o fato do texto ter sido “um comunicado à imprensa divulgado pela RKO Radio Pictures ‘antes’ do lançamento do filme”. Não sei como eram os cinéfilos em 1941 – e se era comum o ‘spoiler’ – mas a revelação ‘o que é o objeto ‘Rosebud” no final do filme, sabendo antes de assistir faz uma grande diferença… inclusive para assistir dezenas de vezes essa obra de arte do cinema.
Rosebud é algo que ele jamais iria alcançar. Aquele vazio no espírito que nos acomete diante do sentimento de impotência perante o mundo.
Todos nós nos vemos aflitos e nos questionamos sobre o sentido da vida (porque viemos e para onde vamos?).
O ser humano com medo da finitude tenta achar fórmulas milagrosas e uma das teorias é a da riqueza – trazer felicidade.
Kaine tentou ser pleno em um mundo que não nos permite nada permanente e absoluto.
Portanto, rosebud é a palavra que resume tais anseios E simboliza algo que ele nunca seria – pleno, imortal e sagrado.
Podemos pensar em um objeto de colecionador que ele sempre perseguiu e nunca teria. Um objeto que não é tangível, nem compreensível. Um objeto que representa a essência do nosso espírito. Um lugar onde ele não sofreria. Um trenó que o levaria a um
Mundo melhor.
Algo que foi queimado e virou cinzas, como acontecerá com todos nós !!!
Belas palavras. Abraços.
O Globo de neve é uma das chaves para entender o Rosebud.
Em síntese é a decepção com o caminho trilhado ao longo da vida.
É a melancólica lembrança da primeira bifurcação importante, responsável por dar início a infeliz caminhada…
Cheguei aqui devido estar investigando o porquê de Lenine ter colocado “Rosebud” como título de uma de suas músicas. Agora faz todo o sentido. Obrigada.