O Quarto do Filho, de Nanni Moretti

Desconfia-se, em um primeiro momento, de tamanha perfeição: a família de O Quarto do Filho tem lá seus conflitos, mas nada a perturbar o equilíbrio. A relação entre seus membros chega a ser nobre. Isso torna a perda, depois, mais difícil de digerir.

Vem o problema, não demora: o filho morre afogado. O mundo desmorona, ainda que não como em um dramalhão: as partes caem aos poucos, nunca de uma só vez; a reconstrução – pequena, tímida – também será feita com lentidão, a partir de sorrisos discretos, pequenos gestos, curiosas descobertas que envolvem o filho e seu quarto.

O pai, Giovanni Sermonti, é interpretado pelo próprio diretor, Nanni Moretti. Psicólogo, ele atende diferentes casos em sua clínica, pessoas cujas vozes, mais tarde, dividirão espaço com seu drama pessoal. As vozes estão voltadas a ele, apenas a ele; com elas, sabemos, sobram motivos para desconfiar da integridade dos seres humanos.

Giovanni depara-se com histórias de “gente real”, “esquisita”, à contramão do que vê em casa. A dúvida eleva o filme: seria a família uma idealização do próprio pai, fuga contra essa “gente real” pela qual é pago para ouvir no trabalho? Ou é possível existir tal grandeza em forma tão leve, feita do amor que um inegavelmente transmite ao outro?

Um fato, ainda no início, coloca essa visão em dúvida: o filho do protagonista, Andrea (Giuseppe Sanfelice), é acusado de roubar um fóssil da escola. O pai assiste aos argumentos do rebento e dos outros envolvidos no caso com dúvida, ao contrário de sua mulher, Paola (Laura Morante), que crê na total inocência do garoto.

O que o pai escuta – e sente – nas sessões de terapia alimentam sua dúvida: até os mais nobres possuem seus desvios. Ao contrário dos membros de sua família, aparentemente protegidos, Giovanni tem acesso ao pior dos outros.

Até a morte do menino, quietude e suposta perfeição incomodam. O protagonista, em momento curioso, chega a questionar a falta de espírito competitivo do filho, derrotado em partida de tênis. Em cena, o garoto – como a mulher e a filha – não pede mais que companheirismo, afeto, é não mais que uma presença iluminada.

Sua morte deixa o pai transtornado. Giovanni culpa-se por não ter dedicado uma manhã ao menino, justamente o dia em que foi mergulhar com amigos e terminou morto. Naquela manhã, ele teve de atender um paciente que precisava de ajuda, homem que descobriu estar com câncer. A vida do filho pela vida de alguém já condenado, deverá pensar.

O Quarto do Filho é sobre a ilusão de que os problemas podem ficar guardados no consultório, nos outros, nas palavras das sessões de terapia – naquelas pessoas que prometem, em vão, não retornar mais.

O homem de Moretti prende-se mais à palavra que à ação. As palavras ora ou outra o iluminam; a ação pode levá-lo a curiosas descobertas, a viagens de transformação. Em algum sentido, uma coisa não existe sem a outra, como se vê em trabalhos tão diferentes como Caro Diário ou Habemus Papam.

No caso do segundo, o líder máximo da Igreja Católica perde a voz e, em crise, decide fugir do Vaticano. Leva à ação. Ao fim da jornada, retorna à palavra, à força do homem religioso restituída pelos verbos do teatro, pela arte, o que nos conduz outra vez ao protagonista de O Quarto do Filho: a certa altura, o pai não aceita o consolo da palavra religiosa, do caminho aparentemente fácil da parábola: “Se o dono da casa soubesse a que hora o ladrão viria, não deixaria que arrombasse a casa”, diz o Evangelho.

A arte liberta, ajuda a entender o universo ao redor. Tem grande importância nas investidas de Moretti, que oferece, em diferentes casos, o fazer cinematográfico. É o que se vê, por exemplo, na abertura de Ecce Bombo, um de seus primeiros filmes, ou depois em Mia Madre, ou ainda no engraçado Aprile, no qual interpreta a si mesmo.

A família não raro ganha terreno nesses filmes: em Ecce Bombo, um jovem Moretti constrói personagens em pequenos episódios da vida cotidiana, com frustrações, amores perdidos e a aparência do prazer em não se fazer nada (lembra Os Boas-Vidas, de Fellini); em Aprile, a chegada do primeiro filho é paralela às mudanças políticas da Itália.

Ganhador da Palma de Ouro, O Quarto do Filho dá espaço ao drama profundo, como Mia Madre. À família como aparente círculo de perfeição – depois quebrado – em um mundo repleto de desajustes, no qual os problemas não são exclusividade dos outros. Giovanni, de cara com os obstáculos, precisa continuar sua caminhada.

(La stanza del figlio, Nanni Moretti, 2001)

Nota: ★★★★☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
O Melhor da Juventude, de Marco Tullio Giordana

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