Fellini industrializou a loucura, é um artista rico.
Esta condição dominante dos cineastas italianos assume em Fellini a particularidade de Ser Ele, o Cineasta, a Vedete, Fellini vende e não Autores ou Atores não tem agentes, pega os telefones e fala para as multinacionais.
Ho un Nuovo Fellini da fare…
Anunciado o filme, começam as corridas dos distribuidores e produtores internacionais em torno do “… novo sonho… nuova fantazya…”.
Fellini encena a produção, excita as imaginações, consegue o máximo do dinheiro, paga-se o maior salário do mundo e mobiliza o povo em filas intermináveis.
Sua glória econômica e social começou com La Dolce Vita, anos 50, no final da Guerra Fria…
(…)
Marcello, o cronista social de La Dolce Vita, que sonha um dia escrever um romance, vive brigando com a esposa e amantes do intersociety romano.
Atrizes, prostitutas, grã-finas, intelectuais passam pelos braços de Marcello que não abandona a esposa e sempre se reconcilia socialmente para evitar o suicídio, mas a substitui por amantes superficiais.
Seus vínculos são com a esposa, embora tenha péssimas relações sexuais com ela.
É a dívida de Cristo à Virgem.
A esposa de Marcello representa a Mãe Sacrificada, de quem o filho não nasceu simbolicamente. Desta divisão entre Esposa e Amante, Marcello desenvolve seu abismo perceptivo. Fellini/Marcello é intelectual de classe média que descobre o mundo mas não pode tomar posse porque a Esposa o castra. No filme vemos o Pai mas não a mãe de Marcello. E o Pai está interessado nas mulheres como o filho é um homem castrado pela Esposa/Mãe.
A Mãe repressiva, a Mulher Inatingível, a Prostituta/Santa é Anita Ekberg que penetra no Vaticano vestida de Cardeal e toma banho (poderia ser nua, mas Fellini não ousou tanto na época…) na Fontana di Trevi, em sequência que escandalizou a censura.
Alberto Moravia comparou La Dolce Vita a Satyricon, clássico latino, e as esquerdas cobraram de Fellini a exclusão da causalidade econômica na estética descritiva do filme, paradoxo de fenômenos subjetivos.
Mas La Dolce Vita rompeu as barreiras das censuras policiais e políticas, conquistando o público mundial sedento de sublimações pornográficas na Roma dos Imperadores.
La Dolce Vita foi o único filme depois da Segunda Guerra que provocou uma revolução cultural no moralismo (sobretudo do público católico), abrindo caminhos eróticos.
É a Queda do Império Romano.
Fellini mostra a sociedade burguesa pós-fascista decomposta sob dominação nortamericana.
Lex Barker, o amante de Anita Ekberg, esmurra Marcello. Steiner, o capitalista social-democrata ex-fascista, se suicida. Os demais personagens se drogam em bacanais e encontram apenas um monstro marítimo… Marcello, diante do horror, vê a imagem de uma Virgem, de uma Santa. O proletariado é representado pelas prostitutas, pela esposa de Marcello, a burocracia pelo pai de Marcello, a esquerda pelos intelectuais e jornalistas amigos de Marcello, mas o Partido Comunista, tão presente na vida italiana, está ausente e nesta abstração política revela-se o Egoísmo Pagão de Fellini.
O paganismo fertiliza as ditaduras pré-cristãs, onde o crime é festejado.
Roma, cristianizada, gozou o crime secreto (vide os alçapões dos Borgia…) e o puniu publicamente em função dos interesses cesarinos.
A parafernália do Direito Constitucional Romano (nosso direito é a Pornografia… como Fellini mostra em Fellini – Satyricon (1969)/La Dolce Vita, Roma de duas cabeças, como Rômulo/Satyricon/Remo La Dolce Vita Filhos da Loba Fellini…) – não foi substancialmente corrigida pelo Vaticano porque o Império Romano apenas adotou Cristo no Estado Novo da Santa Sé, o Khatecyzmo passando a funcionar como poder metafísico sobre o temporal poder político.
Este Egoísmo Pagão, pseudo-Amoral é Hipocryzya de um neo-Kryztão financiado por Hollywood. Marcello, o colunista social é o eleitor secreto do Partido Comunista Italiano, ele não se refere ao PCI, mas toda sua… angustiexistencial… é identificável pelos intelectuais do PCI que, por formação católica, são moralistas e não… devassos como Marcello, um campeão sexual da doce vida pagã…
Cristãos, secretamente, mesmo na Blasfêmia!
Anita Ekberg vestida de cardeal subindinfinitamentescadas da Khatedral de São Pedro é a materialização de um desejo felliniano de ser Mulher Sensual e Cardeal, a visão do Papa Matryarka, audácia que funda o Surrealismo Barroco, il vero… fusão do Paganismo (Anita) ao Cristianismo (a roupa de Cardeal e a Kha – tedral) filmados em Movimentos internos/externos-Atores e Câmera em espiral transcendência.
Pagão mascarado em cristão ou fascista mascarado em capitalista como un capitalista uccide proletario fascista uccide capitalista comunista… metatexto fundamental para que, se compreendendo La Dolce Vita, seja possível ver claro o movimento espiritual romano subjacente à representação sociológica da Hystórya.
Fellini, tocado também pelo surrealismo francês… jorra consciência pura… artérias do inconsciente rompidas pelo Fluxo Nada que se materializa em criações… filme… matéria do sonho…
Em La Dolce Vita Fellini filma o Secreto Social, o lado ocluso do ser, a realidade cerceada pelas metodologias historicistas.
Fellini vê e ouve mais fundo, além do neo-realismo, além do peso cultural da Itália e da cultura mundial, Fellini é um bárbaro, é o sucessor de Atila que entra em Roma com os elefantes da imaginação e conquista o mundo.
Glauber Rocha, cineasta, em O Século do Cinema (Cosac Naify; pgs 259 e 261-263). Acima, Anita Ekberg; abaixo, Mastroianni, Ekberg e Federico Fellini.
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