O ano é 1993. No cinema, O Piano, de Jane Campion. Na sala escura, dois homens acabam de se conhecer. Um deles mais jovem, o outro um pouco mais velho – dez ou 15 anos a mais. A conexão é instantânea. O filme está perto do fim. Ambos querem fugir: a obra apresentada não é “sobre histórias estúpidas”. “Parece um livro de fotos”, observa o mais jovem.
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O primeiro diálogo dos amantes diz muito sobre o cinema de Christophe Honoré: a vida a ser vivida está nas “histórias estúpidas”, nos instantes não menos mágicos que fogem ao velho livro de fotos. Filme do momento, fotografia imediata, aparentemente fora do cálculo, definitivamente fora de qualquer previsão. “A vida tem mais surpresas que um filme”, afirma o mais jovem. “A vida é mais estúpida que os filmes”, rebate o outro, um escritor.
A relação nascida daí, em Conquistar, Amar e Viver Intensamente, não os impede de seguir como sempre foram: distantes a maior parte do tempo (vivem em cidades diferentes), são livres para outras aventuras, escapadas de momento. A relação que nasce desse encontro ao acaso – paixão, talvez amor – marca, para o mais velho, um último suspiro.
O azul em excesso torna o filme de Honoré um tanto individualizante. Suas personagens, por consequência, duelam sempre com a dificuldade de união, não necessariamente com a falta de desejo ou afeto. Não se duvida do poder da entrega, da verdade dos gestos, do banal imortalizado. O diretor nunca julga esses homens em cena.
Jacques Tondelli (Pierre Deladonchamps) é o escritor. Vive com outro homem e tem um filho pequeno. O companheiro está à beira da morte. O filme não perde tempo explicando seu drama; as manchas no corpo indicam o problema. Em viagem a uma cidade menor, o parisiense conhece o jovem e livre Arthur (Vincent Lacoste).
O que o outro diz – longe de promessas, de bobagens contidas em filmes com histórias de amor feitas a clichês – condiz com a realidade de Jacques. Sobretudo, a que espera. Em sua forma pequena, leve, em seu jeito infantil, ao mesmo tempo atrevido, Arthur conquista a todos. Dança, bebe, convida Jacques e o vizinho para dançarem também.
Esse sopro de vida, sabemos logo cedo, é temporário. Não por não gerar confiança e, muito menos, por estar à contramão do que o mais velho representa. Para Honoré, com roteiro de sua própria autoria, Arthur serve à representação do anjo que vem não para minar, mas para fazer ver o outro, Jacques, e o quanto viver ainda vale a pena.
O que torna um mistério sua desistência. Para nós, espectadores dessa realidade um tanto monocromática, de tantos altos e baixos, a morte não condiz com a pulsão de vida de Arthur. Jacques tem suas opções, sabe de seu próprio tempo: o outro, ainda que retrato de algo maior, recorte do que esperou de alguém, chegou-lhe tarde demais.
Conquistar, Amar e Viver Intensamente é raro não por nos dizer como as coisas deveriam ser. Isso, é verdade, filmes como O Piano – belíssimo, diga-se de passagem – já o fazem. Honoré não toma o cinema em sua função primeira; para o realizador, o cinema é simulacro de uma realidade quase sempre estúpida, de elementos que desmancham no ar.
E no espaço da estupidez estão golpes inevitáveis, inerentes a um roteiro de situações inesperadas. Os homens em questão investem nas escapadas não como forma de esquecer o outro. Apenas vivem. É o que há de mais belo por aqui: a cada reencontro, afirmam desejos. Na medida do possível, driblam a morte.
(Plaire, aimer et courir vite, Christophe Honoré, 2018)
Nota: ★★★★☆
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