O convite de Lou Andreas-Salomé desorienta, mas é tentador: a bela dama não quer viver com um homem e se casar com ele; prefere que sejam dois, em relação de amantes e irmãos, de confidentes que devem dividir o mesmo quarto, não necessariamente a mesma cama. O desejo dela confronta a moral da época, a Europa do século 19.
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Os convidados à vida a três são seres sem grande apreço pela ideia de uma moral: tanto para Paul Rée (Robert Powell) quanto para Friedrich Nietzsche (Erland Josephson), a moral é dada pelo ambiente onde se vive, cresce, onde absorve determinada cultura. Se a moral está ligada aos costumes e não à natureza humana, “as definições de bem e mal são meras convenções sociais”, afirma Rée no início de Além do Bem e do Mal, de Liliana Cavani.
O que potencializa o confronto é o desejo sexual. Em algum momento, passado ou presente, Rée e Nietzsche são atacados por um universo em que o sexo livre é permitido.
A pergunta de Cavani, indireta, permeia o filme inteiro: alguma moral sobrevive a esse espaço de novas regras? Sua Lou Salomé é quem melhor lida com a questão, a mais evoluída, ainda que, em algum momento, tenha suas dores expostas. Para a diretora, o que poderia ser um sinal de fraqueza ainda assim não permite que a personagem apequene-se.
Lou é quem confronta, quem pede para que Rée continue de olhos fixos na orgia masculina a céu aberto, certa noite, na Itália em que vivem. O médico tenta desviar, nega, até certa altura do filme, suas vontades. Em momento revelador, retorna à fresta da porta para ver Nietzsche fazer sexo com uma companheira de ocasião.
Lou lida bem com as liberdades. Se esses três corpos podem, em algum momento, ser um só, a ela cabe o lugar do Ego. É quem administra as tensões entre o Superego (Rée, que se bombardeia com limites e proibições) e o Id (Nietzsche, a libertação total). Esse produto antimoral, sob o olhar de Cavani, ganhará dimensão política.
O que também joga luzes sobre a necessidade de certo cinema político – ou de certa política de artistas dos anos 60 e 70 – voltado às relações físicas, à libertação do corpo, para que depois se avance ao confronto público. O antissemitismo corre ao fundo dessa Europa em questão enquanto o trio tenta se entender com seus desejos.
E para viver uma vida a três, em nova configuração, Nietzsche a certa altura terá de abrir mão da própria família, o que inclui a irmã apaixonada. O filósofo vem de linhagem cristã, da vida com pessoas que, segundo ele, sufocaram seus “melhores instintos”. Por consequência, precisou se libertar de “honrada educação” e escolher um “suave demônio” que lhe deu de presente a sífilis, doença indecorosa, mas “violentamente humana”.
Ao pensador não resta nada senão a porta de saída. Nietzsche demole definições com sua presença, caminha à loucura em um mundo no qual não cabe. A saber, um mundo no qual a moral pode surtir crises até nos mais esclarecidos como Paul Rée, que nega desejos homossexuais e passa longe da ideia do super-homem do amigo filósofo.
Interpretada por Dominique Sanda, Lou fica admirada com as ideias de Nietzsche. Em caminhada por um bosque, ele revela à companheira que seu principal professor foi uma jovem prostituta siciliana com quem se encontrou em um bordel, menina cujas partes íntimas estavam depiladas, que o encarava com tranquilidade e possivelmente fingia prazer. Para Cavani, o super-homem é a mulher e atende pelo nome de Lou Salomé.
(Al di là del bene e del male, Liliana Cavani, 1977)
Nota: ★★★★☆
Veja também:
Destruir, Disse Ela, de Marguerite Duras