Estou Pensando em Acabar com Tudo, de Charlie Kaufman

A moça, mais de uma vez, pensa em acabar com tudo. Refere-se ao relacionamento com o novo namorado ou à própria vida? Ao que parece, ela sequer existe, fruto da imaginação – da criação artística, da esquizofrenia, de ambas – de seu companheiro. Nem precisa dizer, a certa altura, que tem a impressão de conhecê-lo há mais tempo.

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As pistas estão todas ali, nessa viagem que ele, sozinho, não pode completar: o trajeto ao seu passado através da nevasca, dos locais em que viveu a infância, da família, do cão adorável, dos livros que leu, do balanço colorido que continua à vista, da sorveteria, da menina pouco desejada, das outras muito desejadas, da escola.

Tanto a nós quanto às personagens, a nevasca impõe a difícil visão das coisas: representa o que ele, Jake (Jesse Plemons), aparentemente um coadjuvante, não pode ver sozinho, ou não quer viver sozinho. Para tanto, cria a companheira (Jessie Buckley) que fala em acabar com tudo porque reconhece ali um relacionamento sem futuro.

Conhecer os pais, a vida do outro, suas raízes – o itinerário a ela cansativo ao longo de Estou Pensando em Acabar com Tudo, de Charlie Kaufman, a partir do livro de Iain Reid. Enquanto seguimos por essa jornada de estranhezas também encontramos o caminho do homem simples, sonhador, o faxineiro da escola em que Jake estudou.

O senhor em questão é o próprio rapaz. A viagem é sua criação, seus fantasmas, para alguns seus delírios. As visões de um artista frustrado, ou de um esquizofrênico esquecido – para quem o tempo passou entre a neve, os corredores vazios, os copos de sorvete empilhados no lixo e que indicam que talvez ele tenha feito o mesmo caminho muitas vezes.

A namorada é ele mesmo. Seu escudo, seu interior, sua força para acessar o porão no qual teme descer, o qual guarda o que não quer encontrar: o que ele realmente é (os trajes do faxineiro lavados na máquina) e talvez o que ele não conseguiu ser (um artista). Na parede, as pinturas são as mesmas que a namorada leva no celular, de autoria de Ralph Albert Blakelock, que teria sofrido justamente de esquizofrenia.

O artista frustrado envelheceu, perdeu para o tempo, manteve-se no mesmo lugar. Ficou para cuidar dos pais e reverenciar os outros, ser os outros, refletir-se na paisagem triste. A começar pelas pinturas de Blakelock que toma para si, às quais seu pai (David Thewlis) lança uma interessante pergunta, a resumir o filme de Kaufman: “Como uma imagem de um campo pode ser triste sem uma pessoa triste parecendo triste no campo?”.

Necessário, portanto, criar a pessoa triste, dar-lhe vida, preencher o quadro de tons escuros – ou o ambiente gélido da nevasca. O quadro é a vida de Jake; a pessoa triste é a nova companheira, sua criação artística, resposta à própria fraqueza. De novo, é preciso ser outro. A arte, diz Kaufman, é uma recriação incessante, não necessariamente cópia. “A maioria das pessoas são outras pessoas”, diz a moça, citando Oscar Wilde.

De novo, a sinédoque, a parte pelo todo, a viagem como reprodução da vida que luta para não se reduzir à mediocridade. Jake recorrerá, por exemplo, à sua versão Broadway, também à de sua amada: dois bailarinos cuja química perfeita é explicada pelo movimento do corpo. Estas, claro, não resistem, precisam ser mortas; depois, vai ao palco para receber um prêmio, para repetir – com maquiagem gritante, quase como paródia – a sequência final de Uma Mente Brilhante – também sobre um esquizofrênico.

Viver pode ser mais fácil quando se vê pelos olhos do outro. Em algum ponto, diz Kaufman, a condição do artista é estendida a todos. Somos criadores em potencial, condenados a viver nossas tempestades de gelo, nossas frustrações, nosso horror à natureza predatória das larvas que devoram porcos, à morte por hipotermia.

(I’m Thinking of Ending Things, Charlie Kaufman, 2020)

Nota: ★★★☆☆

Veja também:
A Despedida, de Lulu Wang

2 comentários sobre “Estou Pensando em Acabar com Tudo, de Charlie Kaufman

  1. Adoro os filmes dele, de Kaufman, nesse ele captura um tipo específico de melancolia, sei la, por vezes uma dor nostálgica, outras a angústia.

    Adorei esse post, foi esclarecedor em muitos aspectos, obrigada! No mais, só eu achei o filme também engraçado?

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