Quem não acerta as contas com o passado tende a escolher líderes autoritários. “Faça a América grande de novo”, diz o slogan de Donald Trump, cravado no boné de um dos quatro sobreviventes da Guerra do Vietnã em Destacamento Blood. Entre os amigos, ele é o mais enérgico, o perturbado que conversa com um fantasma todas as noites e, à sua maneira, com olhos pregados na câmera, alguém que nunca saiu da guerra.
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No caso desse soldado, interpretado por Delroy Lindo, a escolha por Trump é tão natural quanto a perturbação pelo espectro. Trata-se, no filme de Spike Lee, do fantasma de um herói morto no Vietnã, cujos restos mortais agora devem ser encontrados pelos colegas combatentes. Sua presença é simbólica: a lembrança de um país corajoso, de grandes homens que podiam ser mortos de inúmeras maneiras, não pelas mãos do amigo.
Essa é uma das várias ironias desse filme estridente, descontrolado, violento: não se paga a dívida com o passado sem que se reconheça o lugar dos mortos e suas estaturas. Sem que se compreenda que os insuspeitos podem cometer os piores erros quando tomam armas e enquanto caem na arapuca de excitantes slogans patrióticos e politiqueiros.
O fantasma de Chadwick Boseman suscita o melhor entre os soldados que o seguem, os Bloods, e precisa retornar para que Paul (Lindo) encontre paz. Concede ao outro algumas palavras, algo como “você não tem culpa”. O eleitor de Trump é vítima desse peso, do engodo da guerra inútil, ressentido que não ama nem o próprio filho.
Além da ossada do herói, os destacados sobreviventes procuram alguns quilos de ouro que deixaram enterrados na selva. O tesouro ia dos Estados Unidos para o Vietnã do Sul e estava em um avião abatido. Os soldados enterram a riqueza para buscá-la mais tarde; concordam que não se trata de roubo, mas de reparação pelo tratamento dado aos negros nos Estados Unidos, militares inclusos.
O ouro enlouquece os homens, torna-se problema. Difícil não lembrar de O Tesouro de Sierra Madre e do ouro que termina levado ao lugar de onde saiu. Da dancinha de Walter Huston, da loucura de Bogart entre maltrapilhos.
Spike Lee não chega à tamanha insanidade. Sua obra tem brilho frágil, é feita com pressa, soa confusa, em momentos involuntariamente cômica. Não tem a textura dos clássicos, tampouco a rispidez de alguns grandes filmes de guerra. Uma miscelânea sangrenta moldada às figuras manjadas de sempre, como paramilitares desalmados e um francês traidor.
O diretor sai em busca de “seus momentos”, instantes nos quais as personagens parecem flutuar sobre uma prancha; deslocam-se sem caminhar, suspendem o tempo à medida que o mundo corre ao fundo. Entre sugestões delirantes brotam fotos e imagens reais, discursos dos sempre solicitados Martin Luther King Jr. e Malcolm X.
A diversão equilibra-se como pode entre o “filme de mensagem”, que em algum ponto se quer produto de denúncia. O cineasta nos remete, de forma abrupta, aos Estados Unidos de antes e de hoje, em alternância que, para ele, e não sem razão, emula questões estruturais aqui sob os vícios do cinema rápido, quase como um videoclipe: o racismo segue vivo.
O cinema sempre está presente. Em Infiltrado na Klan, O Nascimento de uma Nação, o odiado filme de Griffith exibido em sessão para membros da Ku Klux Klan, com direito a urro de torcida. Em Destacamento Blood, a “Cavalgada das Valquírias”, senha para retornar à loucura da selva, ao “coração das trevas” em Apocalypse Now.
No passado ou no presente, na guerra ou no que dela resta (como as minas que continuam explodindo décadas depois), os soldados sobreviventes são interpretados pelos mesmos atores. Continuam ali, para retirarem do conflito o que ainda pode – sim, pode – reservar algo nobre, algo como uma nova família. Ou a loucura e o estado de guerra constante convertidos em votos e seguidores para gente da estirpe de Donald Trump.
(Da 5 Bloods, Spike Lee, 2020)
Nota: ★★☆☆☆
Veja também:
Febre da Selva, de Spike Lee