A Última Noite, de Spike Lee

Do apartamento de um dos melhores amigos de Monty Brogan é possível ver guindastes retirando escombros do terreno no qual ficavam as Torres Gêmeas, derrubadas no fatídico 11 de setembro de 2001. Apesar do cenário de terror observado da janela, o dono do imóvel, funcionário de Wall Street, nega-se a deixar o local.

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Seu sonho – seu apartamento, suas raízes – é posto no centro de um conflito que também lhe diz respeito, como diz a outros americanos, como diz a Monty. Todos estão com as almas atoladas no desastre, o que não os impede de desviar da rota, sair para beber algo, correr atrás dos números da Bolsa de Valores, passear com o cachorro.

No olho do furacão, tão perto da tragédia, Spike Lee ousa captar o espírito do momento em A Última Noite. Seus homens tentam evitar o espelho à medida que o encaram; enxergam no reflexo os próprios medos, o ódio, a dificuldade de confessar algo ao outro enquanto corre o relógio, no dia e na noite que antecedem a prisão de Monty.

O tão citado protagonista é interpretado por Edward Norton. Nas últimas horas antes de encarar sete anos de cadeia, o traficante revê a vida toda em pequenas lamentações, assiste ao que não pode mudar e o que muda tudo; bebe, briga, chora e se arrepende do caminho que tomou, tendo se tornado, entre tão belos prédios, em tão bela cidade, um traficante.

Precisa, como seu país, acertar as contas com o passado. O tempo corre, a noite cai, a dúvida sobre quem o teria entregado à polícia perdura. O peso sobre Monty é maior graças à suavidade que Norton imprime à personagem, ator monstruoso em composições minimalistas. O aparente paradoxo é explicado: quem menos aparenta sofrer é também o mais humano, que se alegra, com razão, de ter salvado um cachorro.

O resgate do animal abre o filme. Explica tudo, antecede as luzes azuis que cortam o céu de Manhattan e substituem, simbolicamente, as torres derrubadas no ataque terrorista. Monty, por motivo difícil de explicar, decide salvar o cão machucado, coberto por sangue, à beira de uma avenida. Enrolado em pano, o animal é colocado no porta-malas de seu carro.

O animal que tentava mordê-lo representa o animal que, sabemos, existe dentro dele, dentro de todos, reflexo do ódio revelado à frente: no banheiro do bar de seu pai (Brian Cox), Monty encara o espelho enquanto declara odiar asiáticos, negros, italianos, grupos étnicos que convivem nessa nação que insiste em não fazer a coisa certa.

Ao lado dos amigos de longa data, o rapaz de Wall Street (Barry Pepper) e o professor judeu (Philip Seymour Hoffman), Monty prepara-se para uma festa de despedida, sua última noite antes de seguir ao cárcere. Ao lado da companheira, vivida por Rosario Dawson, ele está em seu meio, com colegas, champanhe, luzes neon, traficantes e acertos de conta.

A Última Noite é encabeçado por alguém que precisa pagar por seus crimes. De sua dor, de seu sentimento de perda e da ideia de que tudo não será mais o mesmo resulta o estado de espírito de uma nação fraturada que tenta substituir prédios por luzes, feita de pessoas que precisam vender títulos fictícios a professores bobocas e apaixonados por suas alunas.

O todo pela parte, em vidas que se encontram nesse dia de transição. Nada é por acaso ao mesmo tempo em que os encaixes do texto soam verossímeis. Um filme sobre arrependimento, sobre um tempo de transformação e a impossibilidade de enxergar algo no horizonte senão o sonho de uma fuga e a abertura a outro destino. Sonho que dura pouco.

Machucado pelo amigo a pedido próprio (não quer chegar na prisão com o rosto de alguém que não sofreu), o protagonista assiste ao movimento da metrópole, aos rostos que ele mesmo atacou, em pensamento, ao olhar ao espelho. A cidade ainda sorri. A vida segue. O menino no ônibus escreve o próprio nome no vidro. Monty sorri, continua.

(25th Hour, Spike Lee, 2002)

Nota: ★★★☆☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
Spike Lee: “Nenhum negro jamais me perguntou: ‘O Mookie fez a coisa certa?’. Nunca”

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