Tormento, de Mikio Naruse

Mais do que nos preparar para a tragédia, consumada nos instantes finais, Mikio Naruse interessa-se pelos detalhes, os cabelos que se desprendem, lançados à face da protagonista. Todo drama por esse movimento: a história – o tormento – da mulher que ama o irmão do marido morto, o filme todo com os cabelos presos, retraída.

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O cabelo desprega-se em um dos mais belos closes da História do Cinema. Não há exagero aqui. Aproximação ao rosto que explica tudo, resume a dor e a contrição até então inseparáveis da heroína Reiko (Hideko Takamine). Seus cabelos resistiam como ela. Não por muito tempo, sabe-se cedo: zanzou em torno do amante até fugir com ele no encalço.

A culpa rodeia-a o tempo todo. Ela sofre trancada. O melodrama faz-se pacato, sem explosões. Tormento, como outras obras de Naruse, aborda a insustentável relação baseada nos pequenos diálogos, na passagem do tempo que tanto machuca.

Reiko perdeu o marido durante a Segunda Guerra Mundial. Reconstruiu o mercado da família do homem e continuou por ali. O problema é que a aproximação ao rebelde Koji (Yûzô Kayama), seu jovem cunhado, torna-se maior e, a quem ainda carrega a foto do morto, impossível. A relação de negação é feita com calma, nas voltas que a mulher dá para dizer quase sempre a mesma coisa, nos gestos de rebeldia do rapaz para desviar dos sentimentos: beber, arrumar briga, deixar vazar a fúria de moleque enquanto não se faz homem.

Reiko entende o recado: a maturidade implica reconhecer o amor. Ver nela, a mulher fechada, de difícil penetração, seu objeto de desejo. Não mais as meninas fáceis com as quais Koji dormia, de cabelos soltos, que depois retornam para devolver um relógio. Para uma delas, Reiko oferece um café, mostra curiosidade, quer saber como é estar do outro lado.

Para Naruse, essas vidas não resistem à normalidade – ao contrário do que ocorre no cinema de Yasujiro Ozu. Ambos os cineastas são comumente comparados apesar de diferenças gritantes: o primeiro aceita o calculismo narrativo que resulta em lágrimas, o segundo parece se debater para eliminá-lo, em seu próprio “caos” e exame da realidade.

Em Tormento, os amantes convivem com pressões sociais e econômicas: um supermercado inaugurado na pequena cidade tira clientes das lojas menores. A ideia de velocidade, de ter tudo à mão e em um único lugar, elimina a relação cara a cara, o acolhimento dos pequenos negócios nos quais os clientes conhecem os empregados. O novo Japão dá as caras.

O jovem amante pode se reinventar, pode – e demonstra intenção – de se aliar aos empresários para acabar com o mercado da família e erguer ali um supermercado. Uma exigida mudança para não terminar morto, como ocorre a um pequeno lojista, que se suicida após constatar que não pode vender ovos com o mesmo preço da nova concorrência.

Há de se buscar um motivo para morrer. Para se enforcar, para se lançar em um rio. Koji procura pelos seus ao mesmo tempo que tenta driblá-los, enquanto não escapa do que o aflige, do amor que o consome e o obriga a seguir a mulher que ama.

A trilha sonora de Ichirô Saitô, nos momentos finais, dá a medida certa do drama. A separação é insuportável. Ao perceber que perdeu o amado, a mulher corre e esquece de suas próprias formas, do que foi, de tudo o que a manteve no papel da viúva jovem em vida pacata e sem graça, para enfim revelar seus fios desprendidos.

(Midareru, Mikio Naruse, 1964)

Nota: ★★★★★

Veja também:
Vídeo: Cinco filmes para descobrir o cinema de Mikio Naruse

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