Não é necessário observar a forma da tela ou os cenários para compreender o que separa dois belos filmes de Mikio Naruse. Não demanda esforço, igualmente, perceber o ponto em que ambos, Correnteza e Quando a Mulher Sobe a Escada, podem se encontrar. Do fim de um tipo de vida, em degradação, passa-se a outro, ao futuro deteriorado.
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Os filmes oferecem a transição pelos universos femininos, ambientes em que gueixas assumem-se meras acompanhantes de ocasião. As mulheres, antes, são pacatas, treinadas à obediência, a servir e entreter os homens; sabem cantar, tocar um instrumento musical, vestem-se como manda a cultura e o rigor de tal posição social.
No decorrer de Correnteza, as mulheres estão fadadas ao isolamento, aos novos costumes da metrópole, a viver o que se verá em Quando a Mulher Sobe a Escada. O título que remete à natureza, às transformações inevitáveis, dá lugar àquele que evoca o movimento comum, o gesto cotidiano (não menos simbólico), mais um entre tantos dias de trabalho.
A protagonista da primeira obra é a criada (Kinuyo Tanaka) que vai trabalhar em uma casa de gueixas. Nesse mundo quadrado de paredes frágeis, de um velho Japão tradicional, não é fácil se manter: as contas batem à porta, além de homens pouco educados e que questionam a presença das mulheres na casa, não vista por todos com bons olhos.
A condição feminina, nos dois, resume-se a sobreviver às imposições sociais, aos homens que ainda detêm o poder, às paixões que tanto atrapalham o trabalho. Antes, envolver-se poderia ser algo aceitável; depois, reduz-se a descobrir que homens – com raras exceções – enganam ou querem apenas aventura, casados e presos às regras sociais.
As mulheres em transição – da posição de gueixa ao lugar da prostituta, em qualquer um dos casos sob o eufemismo “acompanhante” – lutam para se estabelecer, ter o próprio negócio ou mantê-lo, viver sob tradições enquanto atropeladas por novidades.
A mesma atriz pode ser a mesma mulher em ambos os filmes: em Correnteza, Hideko Takamine é a filha da dona da casa de gueixas, Otsuta (Isuzu Yamada). Não quer seguir o destino da mãe, perpetuar a tradição; quando diz que tentou um emprego como secretária, causa susto na superiora. Ainda assim, deixa uma ponta de dúvida.
Ela certamente não será uma gueixa no futuro. Pode se tornar empresária, dona de bar, alguém que cresceu desiludida com os homens, que perdeu o marido. No filme seguinte, Takamine retorna como protagonista, Keiko, chamada de Mama, conhecendo bem os meandros desse novo Japão urbano de bairros forrados por bares e clubes, de luzes neon.
Ao contrário de sua personagem anterior, agora é ela quem está à frente dessa história sobre tentativa de mudança e fracasso, sobre sentimentos impensáveis em lugares impensáveis. Para alguém como Mama, apaixonar-se pode parecer derrota; deixar-se levar por um casamento, à conveniência, talvez a maneira de escapar ao que o destino reserva-lhe.
A condição feminina está dada: as mulheres ou serão “acompanhantes” ou donas de casa; ou assumirão o poder sob o julgamento da sociedade ou aceitarão a posição que a sociedade permite-lhes, mas sem poder.
A tela em proporção quadrada de Correnteza – a servir às gueixas, às mulheres de fala ponderada, ajoelhadas sobre o chão – é confrontada pela tela de proporção retangular de Escada. A mudança, de um para outro, diz muito sobre como a forma cinematográfica está a serviço da história contada: em um, o clima das relações de proximidade, da família; em outro, com sua abertura, o da impessoalidade, do livre negócio, das distâncias.
Não seria exagero – mais pelo tema, menos pela forma, ainda que as diferenças ajudem a pensar nas transformações do Japão – dizer que são “filmes irmãos” e, como visto em sua filmografia pregressa, que Naruse esteja outra vez debruçado na personagem feminina encurralada, tomada por um dilema, entre seguir ou ficar.
Manter-se nos domínios da segurança dos homens como boas esposas – como em Vida de Casado e O Som da Montanha – ou ceder à possibilidade de viver, ir embora, não depender de ninguém, e contra as tradições – como em Irmão, Irmã. Em todos os casos, em filmografia vasta, Naruse prova-nos ser um cineasta que perseguiu o olhar feminino.
(Nagareru, Mikio Naruse, 1956)
(Onna ga kaidan wo agaru toki, Mikio Naruse, 1960)
Notas:
Correnteza: ★★★★☆
Quando a Mulher Sobe a Escada: ★★★★☆
Foto do cabeçalho: Quando a Mulher Sobe a Escada
Veja também:
A condição feminina em dois filmes de Mikio Naruse – Parte 1