Incêndios, de Denis Villeneuve

A matemática pura e a guerra são caminhos à descrença, à quase certeza de que Deus não existe. No caso da primeira, como sugere um professor, restam “problemas insolúveis que sempre levarão a outros problemas insolúveis”, problemas de “complexidade atordoante”. Insolúveis, também, são os problemas da guerra em Incêndios.

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Os soldados em combate, milicianos ou apenas assassinos, exibem imagens religiosas coladas às metralhadoras. As armas são usadas por fanáticos cristãos para fuzilar um ônibus com muçulmanos. Para escapar, a única sobrevivente precisou exibir um crucifixo. É a protagonista Nawal Marwan (Lubna Azabal), cujo passado pouco a pouco vem à tona.

Ela assiste à guerra, aos incêndios indicados pelo título, à insolubilidade que seu crucifixo – seu escudo, ou símbolo do problema ao qual está ligada – sustenta. Mais tarde, sua filha Jeanne (Mélissa Désormeaux-Poulin), professora de matemática, procura pelo passado da mãe, por um pai e um irmão que ainda estariam no Oriente Médio.

Jeanne vive no Canadá, para onde sua mãe mudou após viver os conflitos de fundo religioso. Tem um irmão gêmeo, rapaz emburrado, sem interesse pelo passado, vivido por Maxim Gaudette. Depois da morte de Nawal, os herdeiros são incumbidos, a pedido da mãe, a procurar pelo pai e pelo irmão, o que culmina no problema matemático.

Melhor não revelar tudo. Em Incêndios, o irmão questionará a irmã, ao fim, se a soma de um mais um pode resultar em um, e não dois, como parece óbvio. A guerra exclui o resultado esperado, impõe o insolúvel. A matemática abre mistérios, ainda que, por ela, como afirma um professor árabe, Leonhard Euler tentou provar a existência de Deus.

Os filhos são levados às pegadas da mãe, ao terreno da inexistência divina. Todo o filme de Denis Villeneuve, da peça Wajdi Mouawad, é um caminho à descrença. A protagonista Nawal é a prova de que o crucifixo é um escudo ilusório: a salvação que propõe, a certa altura, entrega o horror.

É ela – após assistir à morte do homem que amava, ter seu primeiro filho entregue à adoção, presenciar uma chacina, envolver-se com muçulmanos contra a milícia cristã, ficar presa por 15 anos e ser abusada no cárcere, no qual se viu grávida dos gêmeos – a chave para se encontrar um universo sem seres imaculados, no qual os sinais de bondade extrema e salvação refletem seus opostos, com guerras e abusos.

O professor e orientador de Jeanne classifica a matemática pura como “o reino da solidão”. É como se falasse de Nawal, indecifrável, que sofre sem se explicar, que descobre o filho perdido e o antigo abusado em um momento prosaico, como se do cotidiano comum – no Canadá, em vida mais confortável – igualmente emanasse o extraordinário.

O filme de Villeneuve distribui boas ideias entre frieza, ao passo que a guerra alterna-se entre a mulher ao centro e a visão de um todo que inclui crianças atiradoras e carrascos de rosto limpo. Ficamos entre o micro (o humano) e o macro (o espaço ao redor, todos que cercam a protagonista). O diretor não se contenta com a personagem, tenta ir além.

A ideia que agarra – a de que Deus é insolúvel – parece ser traída pela própria estrutura à qual adere, a de um mundo de peças que se encaixam, entre tempos, gerações, com elipses ousadas e alguma velocidade nos momentos que mereciam mais calma. Pouco se vê, por exemplo, dos 15 anos de cárcere, quando surge o mito da “mulher que canta”.

Claro que podemos argumentar que, entre a ideia defendida e a estrutura narrativa que adere, existe um abismo. Forma e conteúdo soam distantes. Para Villeneuve, é preciso aceitar uma aventura permeada por tragédias para descobrir que a guerra santa – ou qualquer guerra – é moldada a filhos, irmãos e pais capazes de praticar os piores atos.

(Incendies, Denis Villeneuve, 2010)

Nota: ★★★☆☆

Veja também:
O Jovem Ahmed, de Jean-Pierre e Luc Dardenne

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