Bola de Sebo, de Mikhail Romm

Bola é Sebo é uma prostituta enérgica, um pouco rechonchuda, alguém que levanta a voz aos oficiais prussianos após a derrota da França no século 19. Espécie de Shelley Winters pronta para encarar os homens polidos, fardados, como produtos de um filme de Erich von Stroheim. Bastam poucos momentos em tela para que a compreendamos.

Interpretada por Galina Sergeyeva, é a última a embarcar na diligência que transporta burgueses e duas freiras por estradas enlameadas. Em Bola de Sebo, o contato das rodas com a lama dá a ideia do atoleiro que dominará a história: todos os viajantes logo estarão em um hotel de estrada, presos, à espera de uma decisão envolvendo a protagonista.

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Hospedado no mesmo hotel, um oficial prussiano quer passar uma noite com a prostituta. Ela, patriota, nega-se. Os viajantes parecem compreendê-la: carne alguma deve ser oferecida ao inimigo, sobretudo em próprio solo. Mas os dias passam. A estada no local começa a custar caro aos burgueses que precisam viajar e dar continuidade a seus negócios.

A hipocrisia toma conta desses rostos monstruosos do início ao fim – à exceção da protagonista, ainda autêntica. Os burgueses, suas mulheres e as freiras lançam-se, a certa altura, à prostituta: sua carne é a senha de saída, possibilidade de matar a fome do inimigo. Fome de sexo que, no outro, dispensa o gesto patriótico. O dinheiro importa mais.

É de carne que o filme trata, ou de comida. Deixar-se ou não consumir, o que não tem nada a ver com territórios e nacionalidades. A predação burguesa esconde-se nos bons modos, entrega o outro ao próprio lucro. O interessante trabalho de Mikhail Romm é baseado na obra de Guy de Maupassant (segundo João Lanari Bo, em Cinema para Russos, Cinema para Soviéticos, Stalin, após recomendação de Górki, teria visto o filme e gostado).

Os burgueses aliam-se às religiosas. A cena em que Bola de Sebo é cercada por todos, vista de cima para baixo, dá o tom exato do consumo humano, representação da deglutição de si e de sua carne: são como animais plantados sobre a carniça. Quando devoram o frango, durante a viagem, Romm descortina com exatidão esses seres carnívoros.

Bola de Sebo oferece o frango que carrega aos colegas de viagem antes da diligência parar no hotel; no encerramento, depois de a moça ter sido usada para os propósitos de todos, ninguém lhe oferecerá a mesma comida. Cabe a um oficial prussiano – figura de um velho mundo idealizado, que deixa a amada para seguir em frente – dar-lhe o pão.

A realidade da heroína de cabelos altos, decote à vista, contrasta o ridículo desses homens lisos, um deles com o cabelo perfeitamente partido ao meio, outro com barba pontuda, outro com o cavanhaque em forma de foice. O chapéu de bico das freiras ajuda a reproduzir alienígenas de rostos pálidos, prontos para sugar o cérebro do outro, se necessário.

São muitos os momentos em que as personagens desejam falar. Trata-se de um cinema travado à própria forma, sem que o naturalismo corra como se espera, como se sempre algo lhe escapasse. Em outros momentos, flerta com o expressionismo e seus cenários profundos e distorcidos; em outros, volta às faces que facilmente convertem homens em demônios.

Em versão posterior, uma narração dispensável é incluída na obra de Romm. Diz o que não é preciso, explica demais, e, à sua maneira, tenta conferir a fala que aqui falta. Na ausência da mesma, ainda se deve confiar nas expressões, no movimento, na malícia despejada sobre todos, também sobre quem não pretende revelá-la. A conclusão de Bola de Sebo, a personagem, dispensa a narração: nada detém os negócios, nem a guerra.

(Pyshka, Mikhail Romm, 1934)

Nota: ★★★★☆

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

Veja também:
O Diabo, Provavelmente, de Robert Bresson

3 comentários sobre “Bola de Sebo, de Mikhail Romm

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