O Diabo, Provavelmente, de Robert Bresson

O título é a resposta a um questionamento. O que levou a humanidade a tal ponto de sua existência? Ou melhor: o que produz o mal? “O Diabo, provavelmente”, responde um dos passageiros do ônibus às vozes ao redor, dentro e fora ao mesmo tempo, distantes mas tão próximas ao que Robert Bresson deseja transmitir.

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À resposta vem uma ação inesperada: o motorista do ônibus freia bruscamente, abre a porta e deixa o veículo. Nova pergunta: por que ele fez isso? De certo, a ordem não resiste à constatação do oposto. Não por acaso essa cena desenvolve-se no interior de um ônibus, ambiente de coletividade, organização, de sociedade e progresso.

E eis que, nesse mesmo local, em O Diabo, Provavelmente, impõe-se o questionamento sobre todos os problemas do mundo, algo a resumir o todo, a explicar porque os homens chegaram àquele ponto de suas existências. Para Bresson, uma encruzilhada. Ele mesmo, em trecho de uma entrevista reproduzida por Jean Sémolué em Bresson ou o Ato Puro das Metamorfoses, diz, sobre o filme, que pela primeira vez “sentia a necessidade de expressar uma certa revolta contra o que está ao meu redor, de maneira mais direta”.

Por outro lado, em algum momento se enxerga o equilíbrio entre ordem e desordem, entre pontos que aparentemente se tocam e ao mesmo tempo não podem conviver. Para Bresson, a humanidade moderna, nos anos 1970, nasce dessa contradição, desse molde estranho, de ações sem solução. A humanidade aceitou seus próprios demônios.

Em suas Notas Sobre o Cinematógrafo, Bresson dá uma pista: “As coisas em desordem demais ou em ordem demais se igualam, não as distinguimos mais. Elas causam indiferença e tédio”. Impossível não pensar, por consequência, na personagem central de O Diabo, Charles (Antoine Monnier), modelo bressoniano que odeia tanto a vida quanto a morte.

Ele próprio um mistério, em certo sentido a contradição que liga as pontas e resume esse grande filme: não pode viver no reino das situações vagas, prazeres ridículos, consumismo inútil; nem pode morrer pelas suas próprias mãos, pois tem ojeriza à morte. Seu suicídio não será dado senão pela mão de outro, como um servo romano.

O filme é sobre suas andanças, amores e amizades, seus questionamentos. Com alguns amigos, ele vai a um encontro de vozes políticas; alguém, do palco, proclama a destruição. Charles  não compreende. O que querem destruir? Por qual motivo? Sai do local sob vaias. Na igreja, novas vozes, novos sons: agora se fala de religião, do lugar do cristianismo. Outra vez Charles não se encontra, não se vê entre os demais.

O menino tem mais de uma amante. O sexo – e o amor, à sua maneira – parece ser seu ponto de fuga, a liberdade. O contraponto ao adolescente é Michel (Henri de Maublanc), para quem ainda vale a pena viver neste mundo cercado de imagens de horror, de documentários que registram o pior dos homens: a morte de animais, a poluição e seus efeitos.

Viver neste mundo é aceitar sua podridão, é conviver com o som das árvores que caem após cortadas – momento em que Charles tapa os ouvidos – e o som das vozes que reconhecem o pior, que questionam – naquele mesmo ônibus, na cena-chave – o que está por trás de tantos problemas. Apontar ao Diabo parece ser a solução mais fácil.

O filme de Bresson não é religioso nem político. É sobre indiferença e tédio, para ficar na resposta de suas Notas. É sobre não se encontrar neste mundo que tanto e tão pouco tem a oferecer: por pouco tempo, sentimo-nos como Charles à beira do rio escuro, com uma arma para atirar na água, fazer um som que possa elevá-lo, ter à mão uma ideia de poder que para por ali. Charles não pode puxar o gatilho contra si mesmo.

Sentimo-nos, sobretudo, nessa falta de soluções, jogo cotidiano para matar o tempo, ao lado do menino que deseja ultrapassar o limite do não fazer nada, quando, diz ele ao psicanalista, experimenta-se “algo extraordinário”. Ao que parece, cruzar esse limite é encontrar a própria morte, é se curvar ao que nós, racionais, tentamos negar a todo custo.

Filme amargo, sem dúvida. Filme que se aproxima de outro de Bresson, a obra-prima A Grande Testemunha: no lugar do burrinho, o menino; ao redor, o mundo todo e o caminho ao sofrimento, o mal-estar que só pode ser aplacado, ao que parece, pela arte. É o que demonstra Bresson no momento em que Charles interrompe sua jornada e, rumo à morte certa, ao lado de um colega, ouve alguns acordes de Mozart. Belo sinal de vida.

(Le diable probablement, Robert Bresson, 1977)

Nota: ★★★★☆

Veja também:
Diário de um Pároco de Aldeia, de Robert Bresson

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