Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola

A forma em questão é a loucura. A do Vietnã (o tema), a da produção (a empreitada nas Filipinas), a do cinema (o visual). Era preciso chegar à loucura em formação, em Willard, ou à consumada, em Kurtz. Ou ainda à que faz dos americanos verdadeiros americanos, para se sentirem em casa: o surf, as playmates, o coronel com chapéu de caubói.

É de loucura, portanto, que fala Francis Ford Coppola no assombroso Apocalypse Now: a subida de um rio, todo seu processo entre paradas (episódios), entre tiros e flechas, na estranha missão que leva um homem a matar outro, que se intitula deus. Seria demais para o alto escalão: aceitar um dos seus como divindade nos confins do Camboja.

Era necessário ficar louco. Não se duvida que Coppola tenha entrado em tal processo. Era preciso sentir a mata, penetrá-la, aceitar essa missão ao “coração das trevas”, esse espírito maldito que traz o pior do assassino e do colonizador, essa inegável substituição – de Kurtz por Willard – da história que se repete, alterados os rios, os locais.

À medida que avança com barco e tripulação – quatro soldados – rio acima, Willard estuda Kurtz. Embrenha-se em seus arquivos, memórias, cartas. Não sabemos – nunca saberemos – quem é Kurts: o que se tem em tela é a projeção de um homem a partir de outro, o redesenho de uma personalidade, alguém que reconhece o próprio fim.

A missão confidencial é dada a Willard (Martin Sheen) após uma noite – ou dias, semanas, não se sabe ao certo – de bebedeira, de reclusão em um hotel em Saigon. Antes dele, na abertura, vêm o som dos helicópteros, as máquinas que cruzam a mata, a explosão, “The End”, da banda The Doors. O perfeito prefácio do fim.

Em grande medida, como deixa claro na abertura, Coppola aposta na loucura como chave visual para compreender o Vietnã. Guerra com luzes e sombras, fumaça amarela do napalm entre a mata verde, fusão de imagens que permite encontrar o rosto invertido de Willard após a destruição da selva, ao efeito, ainda, da mesma música alucinógena.

Às hélices dos helicópteros sobrepõem-se as do ventilador; de fora, na guerra real, para dentro, na guerra de um homem só, em sua própria cabeça, no pequeno homem forte que, de cueca, delira e golpeia o espelho para sentir dor, a dor de estar ali. Vivo, por sinal, e em Saigon. Prestes a receber uma missão: matar o coronel que enlouqueceu.

Sentimos sua dor mesmo sem conhecê-lo: o pavor de Willard é estar preso à condição de soldado, ao calor infernal que faz o suor escorrer por seu corpo todo, o mesmo calor que obriga Kurtz a molhar a careca com esponja, a se refrescar na sombra de seu quarto, à pouca luz, no templo de pedras guardado pela malta sem rosto.

Não fica claro – não antes de boa parte desse trajeto – o que levou o coronel jurado de morte à loucura. Será necessário cumprir a jornada para compreender seu ponto final, o rei em seu templo, produto mal-acabado de um guerra idiota. Não são necessárias delongas para compreender o que quer o visitante. O alvo sabe de suas intenções.

Nesses homens, o pavor assume diferentes contornos: em Willard, o encontro com o reflexo; em Kurtz, a ideia de que os versos de Eliot são a afirmação fúnebre de que a arte não sobrevive à selvageria; e de que a arte, ainda assim, é possível no ambiente menos provável. Kurtz, mais que Willard, afirma a própria vida.

O enviado precisa matar o novo rei para compreender sua guerra. Coppola, partindo da obra de Joseph Conrad, apresenta o fracasso americano, a criação de inimigos para que se possa, em ciclo interminável, ainda que não exatamente consciente, continuar o conflito. Willard é o candidato à posse do trono, a habitar a mata, dono de sua própria fé.

Quem mais assusta, contudo, é o tenente-coronel Kilgore (Robert Duvall), a portar a frase definidora para tamanha insanidade: “Adoro o cheiro de napalm pela manhã”; a convocar a “Cavalgada das Valquírias” para detonar uma vila inimiga, apenas para se apoderar da praia à frente e levar seus meninos para surfar.

Quando Duvall libera suas palavras e caminha entre os outros, sentimo-nos gelados: é a própria face da loucura que ocupa esse ser que, ao contrário de tantos, não tomba com as explosões ao fundo. A composição de uma vida.

Apocalypse Now é a apoteose visual de Coppola. Como em O Conformista, de Bertolucci, o diretor de fotografia Vittorio Storaro não economiza nas sombras nem na saturação de cores. Prega pequenas lâmpadas sobre a ponte Do Lung, a certa altura, na sequência mais delirante. Na falta de luzes, deixa os homens no escuro, com alguma alternância, enquanto torcemos para ver os rostos entrincheirados, formas que custam a ganhar relevo.

Sem que atrapalhe, a espera é interminável. Boa definição para a obra de Coppola: um filme sobre a espera. Seu protagonista, Willard, atravessa o inferno para encarar Kurtz e renega seu trono quando pode tomá-lo. Deixa ver um lapso de sanidade. Impérios – erguidos por homens de templos ou gabinetes – quase nunca terminam bem.

(Idem, Francis Ford Coppola, 1979)

Nota: ★★★★★⤴

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
Milius, sobre Apocalypse Now: “Todo mundo que trabalhou nesse filme teve transtorno de estresse pós-traumático”

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