O Jovem Ahmed, de Jean-Pierre e Luc Dardenne

O regramento religioso soma-se ao minimalismo do cinema dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne. O resultado, por isso, beira o insuportável em O Jovem Ahmed: por longos minutos, acompanhamos cada pequeno movimento da personagem-título, como a passagem em que se prepara para matar sua professora.

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Ahmed (Idir Ben Addi) é um muçulmano fanático, adolescente disposto a fazer o que manda seu líder, o que este diz pertencer ao Corão. Suas regras incluem parar por alguns minutos para orar, ao longo do dia, além de usar mangas longas e não tocar a mão das mulheres. A professora não entende por que o aluno não quer cumprimentá-la.

Ao perceber o problema dele, ela tenta convencê-lo a evitar o fanatismo, a não se lançar de cabeça às regras que, nele, estão suficientemente sedimentadas. Jovens como Ahmed entregam-se com intensidade, não compreendem que é possível equilíbrio e respeito às diferenças; a religião – ou sua interpretação – aponta o que deve ser combatido.

O caminho é árduo: este não é um filme sobre a regeneração de um adolescente, sobre o menino que entra em uma instituição e, geralmente acompanhado de um mentor bondoso, encontra a salvação. Na ótica dos Dardenne, não se escapa ao real, ao concreto, à natureza crua à qual, a certa altura, o protagonista lança-se para fugir.

Os cineastas não agradam, não concentram humanidade no garoto que, a exemplo de tantas personagens que criaram, evita a abertura para que seja compreendido; este é o cinema da observação, da total proximidade casada – por paradoxal que pareça – à total distância, da cumplicidade que não nos deixa ver quem é Ahmed.

Tão preso à sua crença, às suas ordens, ele precisa, como um anjo cego, seguir seu plano: matar a professora impura que ousou casar com um judeu, também dona de outros “pecados”. Ahmed está apartado da sensibilidade do mundo, ou quase, o que o impede de enxergar nos outros – com suas dores, perdas, contradições – o que são de verdade.

Pelo funil da religião, o ódio é uma regra. Em jornada de trombadas, o menino pode, de repente, tocar o amor, sentindo atração pela filha dos donos da propriedade onde faz sua recuperação, depois de detido. A menina pede-lhe um beijo, apenas um toque; Ahmed, agora vivendo o “pecado”, precisa lhe pedir muito mais: a garota, coitada, deve se tornar muçulmana, casar-se com ele, o que recusará de pronto.

Paralelo possível na filmografia dos Dardenne está no emblemático Rosetta, no qual a simbologia de Deus cabe ao mercado. A menina precisa de um emprego e, para conquistá-lo, serve às regras dessa entidade maior sem compreender o que há pelo caminho, como se estivessem dadas, como se não houvesse meio-termo a desviá-la de sua missão.

Pode até matar para conquistar seu posto de trabalho. O desemprego encontra equivalente no pecado: Ahmed, como a protagonista do filme de 1999, precisa ser puro e digno para garantir sua entrada no paraíso, ser aceito pelo seu deus. O filme divide conosco suas respirações, vacilos, sua incansável corrida à morte certa. Estar perto dele confere o mal-estar desejado e, nesse cinema físico, faz-nos pensar na inexistência de Deus.

Para nós, e outra vez como em Rosetta, fica o movimento e o que há ao redor, o espaço e, sobretudo, seus apertos, pequenos vãos pelos quais esses jovens talvez possam escapar. Tudo se integra, alimenta, permite o palpável, ao mesmo tempo a distância. No caso do menino, menos há para ver: a religião forja-o despido de questionamentos, pequeno desalmado. Segui-lo é viver repetições, o labirinto que ele próprio não pode enxergar.

(Le jeune Ahmed, Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne, 2019)

Nota: ★★★★☆

Veja também:
Rosetta, de Jean-Pierre e Luc Dardenne

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