Os seres cinematográficos aproximam-se do espectador, encaram a câmera, quebram a “parede” que os separa do outro lado; os do teatro ainda tentam manter algum distanciamento, como se fosse possível uma “parede” entre eles e o público que, tão perto, nas poltronas, observa os atores em seus desempenhos no palco.
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Nos dois casos, com o cinema que deixa transparecer falsidade e o teatro que busca a crítica social, Spike Lee faz interessantes experiências visuais. Décadas separam os dois filmes em questão: Ela Quer Tudo, sobre uma garota empoderada, com três amantes, com a cama a servir a todos e o coração para apenas um; e Pass Over, sobre dois rapazes negros sob um poste, à rua, entre a noite e o dia imaginados, na mira dos brancos.
O primeiro é uma comédia da vida comum transmutada em jogo de confissões, intimidades, o qual permite que personagens dialoguem com o espectador, expliquem o que representam na vida da protagonista – a que quer tudo, ou todos – Nola Darling (Tracy Camilla Johns). A ideia é simples, a obra é cheia de achados e momentos cômicos.
O cineasta conquista com pouco: faz crer que a vida dessas pessoas – nessa possível crônica da vida dos negros na Nova York dos anos 1980 – depende de toda a simplicidade que possam transmitir, da verdade que representam, o que justifica a leveza. À época do lançamento, em 1986, Lee ainda não era um cineasta mundialmente consagrado.
A fotografia é quase toda em preto e branco. Os corpos projetam-se, em momentos, em textura falsa, entre luzes e sombras, como se o diretor buscasse modelos, musas, corpos perfeitamente definidos aos traços, aos toques no outro, na conjugação do ato sexual que se revela súmula da perfeição, valorização da beleza negra.
Quando o espectador conhece o suficiente dessas personagens para compreender a liberdade da qual o filme trata, e quando entende que a proposta é penetrar locais amigáveis, com a alcova plantada à luz de velas, sendo o sexo parte de um ritual necessário, Ela Quer Tudo funciona com regras próprias, ambientes delimitados.
É político em sua própria invasão, na maneira como Lee descortina a vida que tanto conhece para mostrar que ali não há segredos. Ao contrário, há relacionamentos tumultuados, proximidade, ciúmes, sobretudo a heroína que vive a liberdade total, que se preocupa, até certo ponto, menos com o amor do que com o fluxo das coisas.
Mulher que, ao lado da cama, tem uma pintura (ou colagem) que remete à Guernica de Picasso, mas em versão povoada por ícones como Malcolm X, também pela revolta dos que gritam enquanto aguardam o pior. A força política, contestatória, é levada ao corpo feminino, à mulher negra que faz suas próprias escolhas, que escolhe ter amantes.
Ao quebrar a “quarta parede” e colocar as personagens em contato direto com o espectador, Lee não diminui necessariamente o que pode ser visto como experiência real. A cumplicidade que se estabelece abre portas ao universo que soa, ao mesmo tempo, confrontador (aos conservadores) e comum, cotidiano, o de uma mulher com seus desejos.
São as cores, por curioso que pareça, que tornam o filme falso. A estética granulada à qual o espectador estava acostumado não casa bem às cores fortes, o que explica o estranhamento, a passagem de sonho, no dia do aniversário de Nola. Ao tocar os sapatos, como a heroína bobinha de O Mágico de Oz, ela é transferida à festa celebrada a céu aberto, aos pés do monumento pichado do Fort Greene Park, com bexigas e demais adereços.
Irônico que a festa seja projetada sobre um monumento – e para o monumento – enquanto dois dançarinos negros apresentam-se à aniversariante e seu companheiro; irônico que esse monumento à memória dos mártires que combateram os britânicos na guerra de 1812 apresenta-se como parte de um sonho em cores, revisão do clássico de 1939, sem que seja impossível não reparar nas pichações que cobrem partes da peça.
Quer dizer, o sonho sempre deixa algo real, confrontador, igualmente a expressão dos negros – a dança, o cinema – que cobra lugar no tempo. Mais ainda: o cinema de Lee pode, em alguns casos, remeter à história de seu país sem renunciar ao onirismo.
Em Pass Over, a encenação vai no caminho oposto à do pé do monumento: antes é necessário aceitar o espaço falso, o do palco, para depois embarcar no seu sentido amplo e, por que não?, real. O cinema-teatro em questão quer ser mais cinema que teatro e mescla filmagens da peça, com a presença do público, a outras, com ângulos inalcançáveis pelo ponto de vista da plateia. O cinema possibilita diferentes pontos de visão.
A proximidade física é estabelecida, os cortes impõem-se, os eixos alternam-se. Lee desenvolve essa fórmula, contudo, sem perder de visto os outros, os olhos atentos que observam, pessoas reais convidadas a assistir à apresentação teatral. Não estranha que tanto Ela Quer Tudo como Pass Over iniciem com imagens reais, para fora do “teatro”, fotografias de pessoas negras em seu convívio social, a vida comum.
Lee convoca o real, ou antes o projeta. Não se pode perdê-lo de vista, é como se dissesse – para além, muito além, de monumentos históricos e sonhos coloridos. Em sua ficção de 1986, projeta personagens para o público, para que este dialogue com tal espaço e, sobretudo, entenda-o; em 2018, projeta-os em um estranho espaço em que o público, tão perto, ainda assim não é visto por aqueles que estão no palco e não estão, jovens negros que, em suas representações, seguem no relento, na linha de tiro do branco supostamente cordial.
No primeiro filme, o cinema sustenta a leveza; no segundo, anula-a. No primeiro, um cinema de personagens que dividem intimidades em espaços quase sempre fechados, às paredes que as recobrem; no segundo, um cinema que propõe a transferência do fechado ao aberto, do teatro para a rua, do falso aparente ao real incontornável.
(She’s Gotta Have It, Spike Lee, 1986)
(Pass Over, Spike Lee, 2018)
Notas:
Ela Quer Tudo: ★★★★☆
Pass Over: ★★★☆☆
Imagem do cabeçalho: Ela Quer Tudo
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