A casa é a abertura ao mundo de sonhos: para dentro, a publicidade; para fora, a bela vista da janela. O homem que nela vive, e que dela terá de mudar, ama o que enxerga para fora. Um dos seus prazeres diários é acionar a cortina automatizada, ver nascer a imagem de sua vizinhança ou além: tudo o que corresponde sua ideia de vida.
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A casa em que vivia, da qual terá de mudar, é quadriculada, tem visual sofisticado, na qual o calor convive em clima ideal com a frieza dos adornos metálicos. A satisfação que gera reproduz-se no tamanho, ao mesmo tempo no efeito discreto a quem olha de fora para dentro: o apartamento, à primeira vista, não é tão belo quanto parece.
O lar para quem viveu uma vida de mentira, que se serviu de uma personagem: o pai rico com sua família de sonhos, sua bela mulher e sua filha atleta. Ainda que tenha uma bela mulher, falta a Javier (Javier Gutiérrez) a filha ou o filho atleta, o que encontra na outra família, a que passa a viver em seu antigo apartamento.
O protagonista de A Casa é um vilão em formação. Um dos acertos dos irmãos cineastas David e Àlex Pastor é fazer o espectador crer no pingo de humanismo que poderia fazer esse homem, em algum ponto de sua jornada insana, dar um recuo. O drama, nesse sentido, quase se sobrepõe ao suspense: o homem ao centro é naturalmente fraco.
Antes de juntar forças e seu plano de manipulação, ele é o perdedor cuja carreira envelheceu. Publicitário em terno escuro, com antigos cases na mala, tenta expor experiência sem ser a novidade, e dá de cara com um mercado feito a jovens, influenciado por filhos de donos de agências, com vagas disponíveis apenas para estagiários.
Javier torna-se o dinossauro moderno que reluta em assumir sua própria extinção: para retornar ao seu posto como pai de família honrado, rico, precisa tirar da frente o pai de família jovem que ocupou seu antigo e belo apartamento, que passou a ver o mundo lá fora, vista tão bela, como antes ele via: a Espanha na qual repousa a elite.
Vale notar: o protagonista não mata para ter um trabalho, mas para ter uma família. Prefere destruir seu carro como parte desse plano do que vendê-lo e ter assim um pouco mais de dinheiro para sustentar mulher e filho, agora colocados na periferia de Barcelona, em apartamento pequeno, escuro, um tanto deteriorado, com a torneira pingando.
A família moldada a seu plano é a publicidade desse universo que “deu certo”, dessa Espanha que poderia ser outros muitos lugares do globo, a extensão – delírio do protagonista – das mesmas imagens que abrem o filme dos irmãos Pastor: o sol em excesso contra a criança feliz rumo ao abraço do belo pai, da mãe perfeita, no melhor lugar para morar.
Essa Espanha vive na tela da televisão e não acha eco nem no belo lar em que Javier morava. O filme evolui à contramão da luz: é soturno, feito de seres calculistas demais (como Javier) ou outros que decaem a pecados com facilidade (como o jovem pai de família que passa a morar no apartamento, ex-alcoólatra, interpretado por Mario Casas).
O protagonista torna-se parasita do mundo ao qual não pertence mais. Diferente do filme de Bong Joon-Ho, o homem com poderes financeiros limitados sabe o que é estar do outro lado antes de fazer vítimas, viveu o prazer de enxergar através da bela janela. Só não podia contar com a torneira que insiste em continuar pingando – do lado pobre ou rico.
(Hogar, David Pastor e Àlex Pastor, 2020)
Nota: ★★★☆☆
Veja também:
Uma Vida Oculta, de Terrence Malick