O protagonista de A Besta Humana, Jacques Lantier (Jean Gabin), poderia ser o mais pedregoso de todos, o mais impenetrável – e por algum motivo se deixa ver. Todo seu interior é exposto enquanto o vento da locomotiva golpeia sua face. Segundo o cineasta Jean Renoir, a partir da obra de Émile Zola, pouca distância, ou nenhuma, há entre homens e monstros.
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Lantier flerta com a morte – a sua, a dos outros – o tempo todo. No momento citado, o do vento contra a face, ele quase mata uma jovem com quem conviveu no passado. Beija a mulher e depois a estrangula, impedido pelo alívio concedido pela máquina que passa.
O homem em questão, bestial mas próximo, faz-se em um mundo entre a carne inconstante e o metal imutável, de um filme realista que busca os efeitos internos e que os torna, contra tudo o que há de mais bruto, palpável, insuportáveis. Seu protagonista não pode amar uma mulher sem atacá-la, ainda que, a certa altura, não possa cumprir o desejo da amante: matar seu marido. O que controla é a locomotiva, a mesma sempre.
O próprio Renoir definiu A Besta Humana como um triângulo amoroso: o homem, a mulher e a máquina. A ele resta viver entre elas, distantes, uma a fazê-lo perder o chão, o caminho, a vida; a outra a se deixar domar, e a quem ele volta, não por acaso, após matar a primeira – sobre os trilhos, depois de passar a noite em claro, perturbado.
Lantier envolve-se com a felina Séverine (Simone Simon), mulher de um funcionário da ferrovia, mais velho e interpretado por Fernand Ledoux. Há ainda outro homem no caminho dela, também mais velho, antigo patrão de sua mãe, talvez seu pai. A certa altura o filme sugere incesto. Desorientada, ela corre ao espelho para questionar se isso é possível.
O marido mata o amante durante uma viagem de trem. Lantier estava por lá, com sujeira nos olhos, passando por um corredor. Descobre o crime enquanto se aproxima de Séverine. É como se o filme recomeçasse: ao protagonista surge a “mulher perigosa”, com quem só pode viver sob o preço do crime; alguém que lhe pede muito, que excede.
No fundo, ela não cabe no universo dele, e diz que não consegue amar ninguém. Depois tenta se explicar, ou se corrigir, para tê-lo em seu poder e seguir com seu plano: “o amo tanto que consigo amar alguém”. Com ela, ele goza em noite chuvosa; Renoir revela o fim do ato por meio do cano pelo qual a água jorra, até parar, passada a tempestade.
O fatalismo percorre a história, todo o mal está dado: Lantier acredita que sua loucura é produto do seu sangue, herdada de seus parentes bêbados. Séverine, por outro lado, contrapõe a tese: ela é fruto de abusos do passado. Essa é a história do choque entre ambos, da natureza incontrolável, a da besta, contra a mulher fatal moldada por experiências de vida.
Para ficarem juntos, ela diz, é preciso matar seu marido. Não há outra maneira. O homem que serve à máquina, às alavancas, ao metal que Renoir reforça com planos longos e realismo, terá de servir a um acerto, à arquitetura do mal, à face humana em sua pior forma. Séverine e Roubaud estariam ligados por um pacto de morte, devido ao assassinato do outro homem. O problema é que Lantier não consegue matar sob encomenda.
Ao fracassar, ele retorna à locomotiva e chora como criança. O filme enreda o público em labirintos que não dispensam a graxa e a sujeira do carvão, a velocidade do trem, seu caminho, o trabalho do homem em seu interior, a persistência da imagem para defini-lo – ou, sobretudo, para contrapô-lo ao que vem depois: a mulher e os sentimentos.
A máquina – imponente, gritante, vista pelas janelas e ao fundo – lembra o público do terreno em questão, dos trilhos pelos quais o homem tenta se aliviar. Ao passo que não pensa, mais parece um animal. A bordo da locomotiva, ele ainda é capaz de explicitar um traço humano: seu total descontrole neste mundo de pleno progresso.
(La bête humaine, Jean Renoir, 1938)
Nota: ★★★★★
Veja também:
Madame Bovary, de Jean Renoir