A condição feminina em dois filmes de Mikio Naruse – Parte 1

A família nunca se concretiza ao longo de dois filmes de Mikio Naruse. Em Sonhos Cotidianos, a mulher trabalha em um bar enquanto o filho fica aos cuidados dos vizinhos. Mais tarde, o antigo companheiro, desaparecido por anos, ressurge e tenta ocupar seu lugar na casa. Em Vida de Casado, feito quase 20 anos depois, a mulher sofre com o cotidiano repetitivo, com o marido frio que ocupa seu lugar e nunca é um marido por completo.

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Naruse, tão importante ao cinema nipônico quanto seus conterrâneos Yasujiro Ozu e Kenji Mizoguchi, canaliza forças na figura feminina, nas “mulheres caracterizadas com delicadeza, mas decididas, independentes e conscientes da impossibilidade de serem felizes”, observa Maria Roberta Novielli em História do Cinema Japonês.

A descrição de Novielli cabe à perfeição às damas fortes de Sonhos Cotidianos e Vida de Casado, às mulheres à beira da miséria ou vivendo uma vida cotidiana sem sabor, na rotina quebrada pelo companheiro que retorna ou pelo marido que quer apenas servir com corpo presente, a revelar a realidade – homens que insistem em ser homens.

Não estranha que a primeira, em Sonhos, revolte-se com o companheiro quando ele coloca fim à própria vida, no término da obra. O homem que se entrega a tal gesto, observa Omitsu (Sumiko Kurishima), é covarde, quis fugir do próprio mundo, não ficou para cuidar do filho, e dela. A carta é rasgada com os dentes, lançada ao chão.

Outra carta, ao fim de Vida, será rasgada. Esta, da mulher ao marido, nunca entregue: as palavras que talvez poderia ter dito, talvez não, àquele que não a compreende. E que nunca a compreenderá. O homem contra a mulher, uma questão sobre diferentes, mundos opostos, o que faz com que a dama retorne para sua posição, consciente de seu destino.

Michiyo (Setsuko Hara) escreveu a carta para si mesma, para dizer o que acredita para si mesma. Pois, a despeito da destruição do objeto, seu interior segue intacto em narrações divididas conosco. Mulher cheia de sentimentos presa a uma casa, à vida massante, à da esposa destinada a limpar e cozinhar, a servir, a esperar o marido.

Cada uma delas, em cada filme, insere-se no contexto de histórias anteriores e posteriores à Segunda Guerra, cada qual na sociedade que se desenha, semelhantes mas em espaços diferentes, em condições quase opostas: a primeira, no filme mudo, precisa sair de casa, trabalhar em um emprego desagradável enquanto o companheiro está desempregado; a segunda trabalha em casa enquanto o marido está empregado.

A segunda, ao sorriso gracioso de Hara, famosa pelas parcerias com Ozu, traz o drama da vida minúscula. A ela cabe gritar o que os outros nem sempre podem ouvir, ou o que ousam chamar de “dúvida”, ou “momento de fraqueza”, “frescura”. A mulher não quer apenas lavar pratos e roupas; a falta de deslumbramento mata-a pouco a pouco.

Mulher que, ao contrário de Omitsu, encara menos os problemas do mundo externo, do Japão com desemprego, violência, prostituição, sapatos furados. Nem por isso de drama menor. Em esferas diferentes, Naruse equivale as mulheres pelos sentimentos, pela possibilidade – pela força – de dizerem e expressarem o que sentem, suas necessidades de mudança.

O drama de Michiyo ganha novo contorno com a chegada da sobrinha do marido. Menina jovem, fugida de casa, oposta à mulher que aceitou servir ao homem: a garota em busca de aventura, ou de um grande amor.

Sua vida toda até então era previsível. Seu retorno à casa da mãe e dos irmãos, a certa altura, sinaliza mudanças. Parece decidida a deixar o companheiro. Parece capaz de unir forças para viver uma nova vida. Paira a indecisão. Ele reaparece. Nem quando precisa dizer algo ele consegue. Mas a mulher entende – entre tristeza pela constatação do mesmo e felicidade por encarar o amor – que deve retornar, que aquele é seu papel.

O fim da jornada de Michiyo reserva, ao contrário da de Omitsu, algumas certezas: a estabilidade que se põe nem sempre é o que há de melhor. O drama de Naruse aproxima-se do wabi, algo como a “serenidade inerente à simplicidade, o refinamento do não elaborado, a austeridade que perpassa a pobreza”, na definição de Novielli.

O drama em tom maior, ao fim de Sonhos, não será visto em Vida. A realidade impõe-se, o retrato da vida moderna carrega algo sem graça. O marido dorme enquanto a mulher pensa, emociona-se, enquanto decide picar a carta escrita a ninguém senão a ela mesma. As palavras que permitem entendê-la, ao sorriso inigualável de Hara.

(Yogoto no yume, Mikio Naruse, 1933)
(Meshi, Mikio Naruse, 1951)

Notas:
Sonhos Cotidianos:
★★★★☆
Vida de Casado: ★★★★☆

Foto do cabeçalho: Vida de Casado

Veja também:
Rashomon: o desembarque do cinema nipônico no Ocidente

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