O espetáculo da mulher-macaco nasce da atração pelo exótico. Além de assisti-la sobre a árvore, pendurada, algumas pessoas querem tocá-la através da jaula, acompanhadas pelo “caçador” e mestre de cerimônias em cenário pobre, sem esconder a farsa. A mulher que serve à encenação tem pelos no corpo todo, vítima do charlatão com quem se casa.
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A comédia italiana, como mostra Marco Ferreri, pode ser cruel em excesso. A mentira anunciada pela interpretação de Ugo Tognazzi dá lugar à expressão assustada, estranhamente real, da Maria de Annie Girardot em A Mulher-macaco. O explorador faz dela o centro de sua apresentação, a mulher colocada como animal a ser domado.
Ela é aqui o que há de triste, ser ingênuo que, na procura pelo amor, não enxerga sua exploração. Ser pequeno que se serve mesmo como animal, mas de outra maneira, para além do papel levado a desempenhar. Sofre pela falta de voz, de escolhas, da liberdade que nunca conheceu.
Não estranha que o filme inicie em uma igreja e termine na entrada de uma casa de espetáculos ambulante, entre o sacro que investe na ordem e o show que celebra a morte. Os que assistem às fotos de um falso missionário entre índios, na igreja, assemelham-se aos que pagam para tocar a mulher-macaco: no fundo, criam sua própria ideia de selvageria.
Portanto, aponta Ferreri, resta o selvagem feito ao clichê, trepado em galhos, monstruoso, cercado pelos mapas que contam sua história, no mito de uma África distante. O cenário é pior que o de um filme B, no qual não pode faltar o figurino do europeu invasor. Antonio (Tognazzi) monta o palco enquanto finge se importar com Maria.
E quando a mesma volta a viver na igreja, na qual os oprimidos são postos em algum lugar para fazer alguma coisa, como cortar batatas, ele logo apela para tê-la de volta: talvez possa adotá-la, ou, se for o caso, casar com a pobre mulher. Outra vez, nem o matrimônio foge aos requintes da festa aos olhos de todos, do espetáculo que corta a rua.
É certamente o momento mais cruel desse filme difícil de definir, entre a crítica social e a curiosa comicidade na qual está fundada o senhor branco, vilão de tantas narrativas: em seu casamento de mentira, Maria canta a música da noiva enquanto desfila com Antonio pela rua, enquanto os outros se aglomeram ao redor, misto de felicidade e desprazer.
Pois o verdadeiro exótico, aos olhos de Ferreri, é o homem. O efeito cômico torna essa figura ainda mais revoltante – e Tognazzi é o perfeito canalha que pode chorar ao fim e, ainda assim, seguir em frente, de quem não se espera nada senão a volta incessante àquele círculo vicioso de sobrevivência a qualquer custo, de atrações circenses.
A crueldade remonta a obras antigas, ao homem (ou à mulher) feito animal, posto no centro do show. Às viagens, palco a palco. Remonta a Monstros, de Tod Browning, sem que os atacados tenham a merecida revanche. Nem isso Ferreri concede ao espectador: sua jornada é antes sobre monstros imaginários, figuras adaptadas ao ridículo, a serviço de idiotas ou religiosos que enxergam nos “selvagens” os pagãos que precisam ser convertidos.
(La donna scimmia, Marco Ferreri, 1964)
Nota: ★★★★☆
Veja também:
O Homem Invisível: o clássico e o moderno
Vi hoje.
Bom filme. A Maria é uma Gelsomina piorada, não? (No sentido de ser a pobre criatura que já nasce condenada).
Mais uma vez, Ferreri usando o humor negro pra cutucar convenções sociais.
Ferreri põe o dedo na ferida. Abraços!