Os moleques que brincam nas ruas são chamados de “insetos”. Aos olhos dos demais, algo distante do humano, possível de ser esmagado, certamente insignificante. Ainda assim, parte do cotidiano. Os adultos, tão cegos, não podem imaginar o poder desses mesmos “insetos” – como se verá no encerramento de Os Miseráveis.
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A infância cobra sua parte no espaço da vizinhança. Quando se rebela, quer ser vista, cansou de ser violada, joguete na mão de adultos, policiais ou criminosos do mesmo bairro de periferia francesa. Interrompidas, essas crianças cresceram, amadureceram rápido, aprenderam a sobreviver, violar regras, atacar inimigos com o que há à mão.
A polícia e o resto, no fundo, comungam do mesmo espírito, da arte de conviver sabendo de tudo, jogar o jogo para cruzar mais um dia nesse cenário de faroeste; a polícia é corrupta como todos os outros, na parte mais privilegiada da cadeia, a rodar quarteirões vigilante, de olhos abertos, dizendo-se a lei quando preciso.
O protagonista é um policial, não um moleque. Um policial que acabou de chegar ao departamento local para trabalhar nessa mesma periferia. Boa parte do filme desenrola-se em seu primeiro dia de trabalho, data para conhecer as regras, a aproximação entre agentes da lei e criminosos do bairro, união que dá vida às engrenagens desse sistema.
Stéphane Ruiz (Damien Bonnard) percebe o clima pesado, entre as brincadeiras dos dois parceiros e a aproximação aos líderes do espaço. A polícia, nesse movimento, não está nem totalmente dentro ou totalmente fora, nunca isenta, nunca aliada de corpo e alma à criminalidade. São figuras importantes para que a mesma engrenagem continue a rodar: não devem atacar as bases da cadeia, ao mesmo tempo fingem força.
O novo policial recusa a corrupção sem sinalizar em alto e bom som. Surgem diferentes problemas durante sua ronda: um filhote de leão desaparecido do circo, uma gravação de abusos policiais feita por um drone, um garoto atingido por uma bala de borracha. Os crimes avolumam-se no colo das autoridades, a combatê-los, também a praticá-los.
Manter a boa convivência entre lados, com a polícia para garantir que a revolta nunca ultrapasse aqueles limites, é o que molda a hipocrisia dessa sociedade que se forja unida, ao som da Marselhesa, na vitória da seleção francesa de futebol na Copa do Mundo. À sombra dos cartões-postais da capital, pobres e ricos comemoram.
Passada a festa vem a realidade: a seleção e sua mescla de cores, tal como a bandeira, como um Estado almejado, não são capazes de dar voz e presença a todos; nas barbas, “insetos” criados pelos mais velhos, moleques que precisam encontrar uma saída. A criminalidade mais parece um ato contra algo que não entendem, resposta à ineficiência de todos, como se assim, tão pequenos, pudessem provar força aos grandões armados.
A ousadia custa caro. O menino (Issa Perica) que furta o filhote de leão é perseguido, golpeado, fica desacordado e sobrevive – cara a cara com um leão adulto, no interior de uma jaula, na cena mais forte do filme – para evidenciar cicatrizes. Tudo em sua expressão, na pele golpeada, para que se veja, e não se duvide, da vingança gestada em silêncio.
Pois Os Miseráveis, de Ladj Ly, empresta o título da obra de Victor Hugo para falar de insurgentes, também de poderosos que não conseguem enxergar os “insetos”, e de como estes podem preparar um levante. Para devorar os primeiros, claro; para conquistar – nas ruas, nos corredores apertados – sua expressão de revolta. A História e suas voltas.
As famílias apertam-se nos conjuntos residenciais. Finge-se inclusão. Ly capta o sufoco sem culpar alguém separadamente, enquanto todos são vítimas, da polícia aos criminosos, distantes da Champs Elysées e do significado da bandeira tricolor.
(Les misérables, Ladj Ly, 2019)
Nota: ★★★★☆
Veja também:
O Oficial e o Espião, de Roman Polanski