As cicatrizes atraem. São recortes desprovidos de escolhas estéticas, marcas que carregam histórias de acidentes e dor, linhas tortas convertidas em prazer pelas personagens de Crash: Estranhos Prazeres. Em cena, o oposto ao design perfeito, a constatação de fragilidade e rompimento. Mais de uma vez, busca-se a cicatriz com a boca.
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O sexo é necessário, ocorre o tempo todo. Mais que artifício para chocar, para David Cronenberg é a maneira de as personagens conviverem com desejos em suas próprias cápsulas, seus carros, sobre motores que talvez as levem à morte, como diz o homem à mulher, ao fim, após o acidente, ao consumirem o sexo outra vez.
Poucos filmes reproduzem fetiches e patologias da mente como essa obra-prima de Cronenberg, turbilhão de jogos e lances no escuro, de pessoas estranhas chegadas ao perigo. O prazer levado às últimas consequências, como se saído da mente de um Oshima: o sexo dentro de carros, os acidentes como catalisadores das sensações.
Depois de bater o carro e ficar preso a uma cama de hospital com pinos na perna, James Ballard (James Spader) descobre uma espécie de clube no qual os membros reproduzem acidentes que tiraram a vida de famosos como James Dean e Jayne Mansfield.
Como ele, mas no outro carro, a estranha e um pouco mecânica Helen Remington (Holly Hunter) sobreviveu à mesma batida. Atraídos pelo perigo, flutuam à sombra de Vaughan (Elias Koteas), o aparente líder do bando inclinado às batidas, alguém que, graças à genialidade de Cronenberg, consegue migrar do monstro de Frankenstein ao desejado sexualmente – isso, claro, aos olhos dos que o rodeiam, que por ele confessam tesão.
Ballard fica cada vez mais próximo do grupo, deixa-se levar pelos jogos, pela ideia do prazer produzido pela colisão de máquinas e, vivo ou morto, pela dor. O bando não esconde linhas religiosas, seita que ganha vida com figuras remontadas, partes quebradas, gente como Vaughan, que gosta de veículos ressuscitados, prontos para um novo acidente.
Soa moralista dizer que o filme apenas se deixa guiar por uma ideia destrutiva. Cronenberg é fiel à crença das personagens: impossível reproduzir tanto prazer e dor se os mesmos sentimentos não se confundirem, para além de gêneros e tipos físicos. A partir do livro J.G. Ballard, o cineasta mostra que a unidade do grupo depende tanto do prazer compartilhado quanto, em outros casos, da ideia de sobrevivência.
Aquelas pessoas acreditam no que fazem. Hipnotizadas, vivem a expectativa de assistir ou se envolver com novos acidentes. Enxergam na lataria deformada o espelho da própria pele. Tocam o metal como tocam o corpo do outro, fabricam o prazer intenso à medida que aceleram seus carros, sem que o espectador possa contrariá-las.
Cronenberg faz um filme real sobre pessoas fechadas a um estado destrutivo e final, atiçadas pela imagem cinematográfica, pela possibilidade de empunhar câmeras e filmar os mesmos acidentes. Percorrem a fumaça, reparam – como a câmera, em pleno prazer – nos grandes alicates que conseguem cortar a lataria, para revelar os corpos.
Elas têm no que acreditar, inclusive. Vaughan explica suas ideias a James: fala de uma “psicopatologia benevolente que retrocede contra nós” e defende que “um acidente de carro é muito mais um fertilizante do que um evento destrutivo”. Seu projeto, assume, é “vivenciar isso”. Para Cronenberg, não faz sentido dizer se estão certos ou errados.
A proposta é captar a pulsão de morte, o risco que essas pessoas correm com prazer e, por mais óbvio que pareça, o vício de certa sociedade moderna com ojeriza às peças perfeitas, às máquinas feitas para proteger, enquanto parecem “fertilizantes” a favor da destruição. Um filme que desmascara, com gigante intensidade, a verdadeira vocação dessas criações, sem nunca permitir odiar suas personagens de corpos marcados.
(Crash, David Cronenberg, 1996)
Nota: ★★★★★⤴
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
Gêmeos – Mórbida Semelhança, de David Cronenberg