A situação é conhecida e define as aventuras – ou seriam desventuras? – do senhor Hulot: um mundo todo contra um homem só. Do outro lado não é muito diferente: o protagonista tenta – quase sempre fracassa – frear os outros enquanto não causa confusões.
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Se por um lado há o cão na estrada para impedir sua passagem, ainda no início de As Férias do Senhor Hulot, por outro há o barco que ele quebra e, aos olhos dos banhistas, mais parece um tubarão. Ou seja, há o que se impõe e o que ele impõe, o acúmulo de confusões ao qual ele é tragado, além daquele ao qual todos – ou quase todos – termina por tragar.
Há também algumas figuras reais que escapam a ele, vivas graças a esse mesmo mundo em que Hulot põe os pés, a ser flagrado. Menos que uma personagem, mais que simples figuração especial. Talvez seja o caso de falar em beleza intrusa, ou milagre: a criança que, com um sorvete em cada mão, sobe a escada e tenta abrir a porta do hotel.
O que essa criança e tantas outras pequenas figuras adoráveis têm a ver com Hulot? Tudo. O diretor Jacques Tati, em roteiro escrito com Henri Marquet, cria antes um espaço, um universo, e faz deste o habitat das mais diferentes e semelhantes figuras, das mais únicas mas universais personagens que, em tempo restrito, povoam o campo.
É importante abordá-lo. Tati prefere a exploração do campo ao jogo da decupagem tradicional: faz suas criações desfilarem no espaço, ora com distância maior, ora nem tanto, provando a coexistência entre todos, Hulot (o próprio Tati) incluso. Como o Vagabundo de Chaplin, aqui o protagonista existe a despeito desse espaço de confusões.
Mas, diferente de Chaplin (que, como Hulot, vem da escola burlesca), Tati parece ter mais paciência, trair a ação esperada em nome de certa elegância (francesa?) que o torna o senhor da comédia do acaso, ou, para ser mais exato, a comédia do universo, a comédia natural da qual não se pode se ver livre: ela existe para além do protagonista.
Não poderia haver elogia maior, por sinal justíssimo: Tati, nesta primeira aparição de Hulot, é senhor (como criador) e parte (como personagem) de uma França ensolarada, nas férias, quando as pessoas tomam carros e trens para correr à praia, hospedar-se em hotéis tocados por areia branca, praticar esportes, pegar conchas, jogar, talvez dançar.
Hulot é um deles. Grande, cachimbo à boca, não fala nada. Ouve-se apenas o balbucio a expressar o nome. Algo como “Ulô”, ou perto disso. Não demora para incomodar aqueles que, como estátuas, cumprem o rito das férias – belas mas nem sempre agradáveis. Para Tati, as pessoas são repetitivas, vítimas de seus ciclos, até quando estão de férias.
A bordo de seu pequeno, antigo e simpático veículo, rumo aos dias à beira-mar, Hulot é quase atingido por outros carros, outras máquinas, na estrada. Os homens da cidade pedem passagem. Todos têm pressa para não ter pressa. A ironia do mundo moderno é natural à obra do grande diretor francês, como se verá depois em Meu Tio e, sobretudo, em Tempo de Diversão. Os homens não enxergam os monstros que criam.
Além de Hulot, várias pessoas acomodam-se aos olhos do espectador: a garota loura observada pelos meninos e que, mais tarde, dança fantasiada com o protagonista; um velho homem de terno e sua esposa, que circulam pelos arredores; a criança que queima uma barraca e o corpo de um banhista; o garçom mal-humorado do hotel.
A comédia é produto de toda essa natureza incontrolável, dessas peças dispostas, contra ou a favor de Hulot. A impossibilidade de deixar a meleca do sorveteiro cair no chão, por exemplo, ou o balde que às vezes volta, às vezes escapa com a força da onda – em outro momento milagroso dessa grande comédia lançada em 1953.
Nas férias de Hulot, Tati celebra o cinema do movimento, da palavra exclusa, da celebração de personagens que com pouco ou nada ganham o espectador, a comprovar que o antagonismo só existe nas próprias situações. Embalado pela mesma música, Hulot tranquiliza enquanto suja o chão do hotel, tropeça com malas na mão, desarruma quadros, invade um funeral, acende fogos de artifício e acorda o hotel inteiro.
(Les vacances de Monsieur Hulot, Jacques Tati, 1953)
Nota: ★★★★★
Veja também:
A história da versão colorida de Carrossel da Esperança,
primeiro longa de Jacques Tati