Tati antes de Hulot

As palavras pouco a pouco deixaram Jacques Tati. É caro o silêncio de sua personagem mais famosa, o senhor Hulot. Nem sempre foi assim. Tati falava, e até com certa constância, nos primeiros filmes em que apareceu como ator, ainda jovem, nos anos 1930. Já era um homem sem jeito, desengonçado, que só poderia caber no mundo a partir de confusões.

Curta nossa página no Facebook e siga nosso canal no YouTube

No curta-metragem On Demande une Brute, dirigido por Charles Barrois, ele assina o roteiro ao lado de Alfred Sauvy. Interpreta um ator que se vê em meio a uma luta de boxe, contra o grandalhão imbatível que ninguém quer enfrentar. A saída dos patrocinadores da luta é apelar à farsa: contratam um fingidor para servir de oponente.

Nessas investidas cômicas iniciais, Tati mostra livre e clara inclinação ao burlesco, com toques típicos dos gênios do comédia muda, como Mack Sennett e Charles Chaplin. Como ao pai do Vagabundo, ao pai do futuro Hulot o ringue é um espaço de infindáveis possibilidades sob as regras da comédia física, a qual bem soube aproveitar.

Em Cuida da Tua Esquerda, de René Clément, com roteiro de Jean-Marie Huard e Tati (não creditado), o cômico chuta o traseiro de seu oponente como Chaplin fez inúmeras vezes, em voltas ao redor de grandalhões toscos que complicam sua vida. Tati tomaria parte dos grandalhões em sua forma e, do Vagabundo – ou de qualquer figura heroica improvável típica a esses filmes -, ficava mesmo com a ternura, com a inocência.

Matérias-primas básicas que mantêm nesses curtas, sempre a sacar gags interessantes, a solicitar o físico ante à presença (ainda) comum da palavra, ou mesmo do plano detalhe (como os de Clément em Cuida da Tua Esquerda, quando o público vê estourar os botões que seguram o peito de Tati antes da luta sobre o ringue, para mostrar força).

De 1935, Domingo Alegre, de Jacques Berr, traz Tati como um trambiqueiro que, ao lado do comparsa, leva turistas para o campo, para um dia de lazer. Alugam um carro com dinheiro furtado do próprio dono do veículo e, a certa altura, cercam a máquina tentando fechar suas pequenas portas. A cada fechada, outra se abre, e não termina nunca.

Em sequências como essa se percebe o quanto a forma esguia de Tati coloca-o em evidência nos planos médios, a revelar o corpo do todo, à medida que se movimenta sem parar – e diz adeus, em terreno que dominava bem, às palavras.

Ainda voltaria a elas em seu primeiro longa-metragem, Carrossel da Esperança, de 1949, que tem uma das principais sequências – a mais agitada, quando entrega cartas e corre atrás de sua próprio bicicleta – retirada de seu curta anterior, Escola de Carteiros. Esses dois grandes filmes marcam o início de Tati na direção e foram feitos após o fim da Ocupação.

Em ambos, volta a colocar suas personagens entre a cancela da linha do trem, como no encerramento explosivo de Domingo Alegre. Em Escola e Carrossel, o carteiro vivido pelo próprio diretor vê sua bicicleta presa na estrutura metálica que sobe e desce. Balbucia palavras inaudíveis ao funcionário da linha do trem para recuperá-la.

Carteiro veloz também seria visto no início de Cuida da Tua Esquerda, em meio rural, profissão de aventura que, ao realizador, serve à perfeição às gags do primeiro longa. E são várias: o momento em que fica preso entre o cavalo e a charrete; a confusão que arma ao se ver do lado oposto à bicicleta em uma cerca e, mais de uma vez, a entrada no café pela porta da frente e sua súbita aparição na sacada do prédio, para a ira do proprietário.

Em Escola e Carrossel (difícil desassociá-los), vê-se mais que a nascente genialidade de Tati: está em cena a construção da forma que ganhará vez, com Hulot, em obras-primas como As Férias do Sr. Hulot e Tempo de Diversão. Nesses filmes, sobretudo em Carrossel, Tati tem consciência da importância de tomar distância, de nunca estar por completo.

O longa começa e termina sem ele. É como se, ao universo de tantas personagens, pequena vila em dia de festa ao redor de um carrossel, tal figura fosse um acidente, gigante veloz sem inclinação à maldade, ser feito aos olhos de uma criança – o que talvez faça pensar nas crianças convertidas em cinegrafistas do anterior Cuida da Tua Esquerda.

Ainda que seja, Tati não quer ser o protagonista. Ainda sem perder totalmente as palavras, o cineasta cria um universo – que antecede o riso, afirma André Bazin – cuja organização só existe a partir de confusões, teia de peças soltas que aos poucos, aos tropeços, encaixam-se, como parece ser no mundo de todo gênio da comédia.

Bazin reconhece que esse universo ordena-se a partir da personagem, ainda que esta não esteja totalmente presente. Para o crítico e teórico francês, ele pode estar ausente de algumas das gags mais engraçadas. Essa forma de estar sem estar, de protagonizar sem reivindicar o centro, seria levada a Hulot, “o gênio da inoportunidade”, segundo Bazin.

O tamanho de Tati servirá para ver sua inabilidade com tudo o que está ao redor: é a maneira de expressar seus erros, sua natureza maior, a assinatura de alguém que não cabe nesse mesmo mundo senão pelo acidente, ou pelo absurdo. No início de Carrossel, rumo à cidade, ele trava briga com uma mosca em estrada de terra.

Na pequena vila, perde cartas, entrega encomendas aos pedaços, permite que um bode se alimente dos envelopes que, aplicado, precisa entregar em velocidade. Por ali, no centro das brincadeiras, naquele dia feliz, o futuro anuncia-se: em cinema de rua, um documentário mostra o moderno serviço dos carteiros nos Estados Unidos.

Segundo François Truffaut, Tati e Robert Bresson eram os únicos realizadores franceses que, à época do lançamento de Meu Tio, fim dos anos 1950, tinham controle absoluto sobre suas criações. Não precisavam de rostos famosos, da estrutura de estúdios. Tinham o tempo a seu favor.

Tati, com Hulot, tornar-se-ia gênio do movimento, embalado por confusões que cercam um homem mudo, grande, charuto à boca, escondido no pequeno chapéu, ao mesmo tempo em que insiste em escapar do centro e assiste à vida dos outros.

Carrossel guarda um espírito otimista, uma França profunda, pouco ou nada cínica, em que crianças seguem o trator que arrasta as peças do carrossel, crianças que abrem e fecham o filme. Por ali há também a senhora encurvada que passa por todos, que reivindica as bordas, para apresentar o local acolhedor e bagunçado, perfeito para Tati.

(On demande une brute, Charles Barrois, 1934)
(Gai dimanche!, Jacques Berr, 1935)
(Soigne ton gauche, Jacques Tati, 1936)
(L’école des facteurs, Jacques Tati, 1947)
(Jour de fête, Jacques Tati, 1949)

Notas:
On Demande une Brute: ★★★☆☆
Domingo Alegre: ★★★☆☆
Cuida da Tua Esquerda: ★★★☆☆
Escola de Carteiros: ★★★★☆
Carrossel da Esperança: ★★★★☆

Foto de cabeçalho: Carrossel da Esperança

Veja também:
Como Fera Encurralada, de Claude Sautet

2 comentários sobre “Tati antes de Hulot

  1. Tati era o comediante que representava a França como o Chaplin para os Estados Unidos.
    Tati fez excelentes comédias físicas e o detalhe é que são faladas.
    Tati estava à frente do seu tempo com suas comédias geniais.
    Meu tio é a minha preferida.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s