A Filha de Ryan, de David Lean

O oficial inglês surge das sombras. Não é exatamente real. À moça que espera pelo grande amor, casada com o professor pacato e de meia-idade, o recém-chegado projeta seu desejo de fuga, beleza e alguma tragédia: é viril mas talvez não tão heroico como dizem. É manco, o que não o impede de lhe proporcionar prazer sexual em meio à mata.

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Na face, a cicatriz. O trauma, a guerra. Cicatriz que sinaliza lágrima vertida em sangue, a dar ao rapaz com rosto de príncipe a aparência maldita, indicativa, justamente, de que deve ceder àquela mulher – como ela a ele. Não tem jeito: a união de ambos em A Filha de Ryan é mais que previsível.

O diretor David Lean não perde tempo com as preliminares dessa junção. O casal beija-se antes mesmo de saber seus nomes, na taberna do pai dela, única em rua de pedras e lama na Irlanda à beira-mar dominada pelos ingleses. A moça, Rosy (Sarah Miles), casou-se com o homem errado e, ao ver o militar, é atacada por desejo inexplicável.

Contra essa Irlanda escura resumida à mesma rua, Rosy recorre às cores da natureza; não por acaso, é entre ela, vestindo vermelho berrante, em sequência enfadonha, que enfim se entrega ao recém-chegado homem fardado. Abre-se como as flores, encharca-se do colorido que ainda gruda na roupa, vive a fuga com a qual sonhava sem sair dali.

Observa o oceano movimentado, na abertura, como amostra de sua necessidade de viver, ou fugir. Acreditava no amor pelo professor mais velho que caminha pela praia, Charles (Robert Mitchum), certamente, no espaço restrito em que está, aquele que a educou na mesma escola em que passará a viver quando casar com o mesmo.

Pois a rua em lama é o oposto do oceano: é o canal estreito à qual a moça foi condenada, como tantos e tantas, a viver as regras do bairrismo, da igreja, a quem resta sonhar. Sem esforço, Lean, com roteiro de Robert Bolt, prega na protagonista essas características. Ela descobre, com a impotência e lentidão do marido, que estava errada, que não o ama.

Sem palavras, Lean expressa sua falta de sexo, a necessidade não assumida por quem está fadado a gritar em silêncio, feito ao papel da dona de casa sem deslumbramento, ação, vigor, à espera do tempo. A mudança de Rosy não é fruto do casamento; seu desespero tem a ver com experiências que ainda não foi convidada a sentir.

Fica claro, na festa do matrimônio, que não poderá se desligar dessa sociedade mesquinha que a ataca atrás do primeiro beijo, dos rapazes e meninas lascivos que poderiam, fosse outro caso, embalar sua noite de núpcias com a energia da dança. Para dentro da casa, sob o lençol, à espera do marido, tem apenas o início de uma noite de sono.

Mais tarde, na escola, o novo lar, pede que o marido tome o café da manhã sem camisa. Espera pelo contato dele, por algum respingo de macheza, o qual sempre esperou: eis a natureza bruta que deveria tomá-la, ou à qual deveria se entregar, como almejava, de olho no mar. Ou à qual será levada depois – com mata, rio, flores – pelo amante.

Difícil definir Rosy. Seus sentimentos põem-se à mostra de forma abrupta, suas escolhas fazem-na imatura, sua coragem contrasta a estrutura frágil, o lábio trêmulo, a aparência pouco vivida. Destoa das outras meninas, daquele povo irlandês – algumas exceções salvas – aparentemente preguiçoso e atrasado, à espera de nada, como pontua o inglês Lean.

Personagem importante no percurso de Rosy – tão importante quanto o oficial traumatizado vivido por Christopher Jones – é Michael (John Mills), com deficiência intelectual e, tal como o amante, a arrastar uma perna. Para a moça, a visão de um monstro, o indesejado, a natureza que não deu certo – aquele que, no seu casamento, ao fim, quer ter sua parte no ritual do beijo à noiva. O outro lado da moeda, tão humano e dolorido, ou mais.

Enquanto a protagonista sofre por não ter vivido muito, o amante sofre por ter vivido demais (a guerra). A ela, traz experiência física, paixão, ao passo que ao professor resta o papel ao qual sempre serviu: o bom homem, o bom marido, o educador. O que será de ambos é um mistério nesse filme irregular, de belas imagens e pequenos achados.

(Ryan’s Daughter, David Lean, 1970)

Nota: ★★★☆☆

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

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