Věra Chytilová contra a máquina de moer mulheres

A Vera (Vera Uzelacová) de Algo Diferente assemelha-se à Marta (Marta Kanovská) de Teto. A primeira é uma dona de casa sufocada pela vida repetitiva, com marido e filho, e que por momentos encontra alívio em um amante. Marta é uma modelo em um mundo vazio, feito de propaganda, no qual serve os produtos de fundo com sua beleza.

Essas mulheres, nos primeiros filmes de Věra Chytilová, são esmagadas por uma máquina difícil de enxergar, invisível à sociedade em questão, em preto e branco. Só mais tarde, na primeira imagem de As Pequenas Margaridas, suas engrenagens serão reveladas, na forma de uma máquina verdadeira, uma representação do que deve ser combatido.

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Chytilová lançou dois médias-metragens em 1962, início de sua carreira: Teto e Saco de Pulgas. Ambos exaltam seu talento ao embaralhar realidade e ficção, seu flerte com o “cinema verdade”, seu tom de libertação não ao encontro, mas já inserido por completo nos cinemas novos de seu tempo, em flertes com a nouvelle vague francesa.

Teto é sobre uma modelo, sobre não encontrar saídas, sobre um falso mundo belo que à moça nada devolve. Saco de Pulgas, sobre meninas presas, feito com câmera subjetiva. No caso do último, a verdadeira protagonista, Eva, cede apenas seu olhar, nunca sua forma. Ela assiste à insubordinação da colega Jana no internato em que vivem.

A certa altura de Teto, Marta remete o espectador à Jeanne Moreau de Ascensor para o Cadafalso: vaga pela rua, à noite, sem rumo, dona da expressão que permite penetrar – ou supor, no mínimo – pensamentos perdidos, desesperança.

Não estranha se Vera, em Algo Diferente, representar o futuro de Marta. A modelo torna-se a dona de casa. Nos dois casos, a mesma mulher de poucos caminhos, a encarar a felicidade com a presença do filho pequeno. Logo escolhe a fuga, o sonho que o amante pode lhe proporcionar: engana a si mesmo aos beijos, em um bar, com o rapazote.

A história dá voltas sem economia: à frente, estará no mesmo bar com o marido e o filho. Desenha-se para cada conjuntura com um papel, ainda que o cenário não sofra alteração. Mulheres distintas em uma só, ao passo que o drama de Vera, sua vida aparentemente sem graça, encontra paralelo na ginasta Eva (Eva Bosáková), do mesmo filme.

Opostas às aparências. A montagem de Miroslav Hájek em Algo Diferente é brilhante: a vida entediante da dona de casa alcança as repetições, a busca pela perfeição, os movimentos da atleta. A primeira tenta encontrar o passado, a juventude no amor passageiro e proibido; a segunda, o futuro, o passo à velhice, a “aposentadoria”.

As duas não podem escapar da máquina que conduzem ou, curioso como parece, à qual são conduzidas. Máquina que Chytilová confronta e constata, que precisa detonar com seu mergulho de cabeça, pouco depois, no surreal-anarquismo de Margaridas. Máquina, nesse caso, de um cotidiano que aproxima mais do que separa suas mulheres.

A ginasta de Algo Diferente assemelha-se à adolescente Jana de Saco de Pulgas: ambas acenam à liberdade, à mudança possível, sem perceber ao certo o que as atinge. A primeira, perto dos 30 anos, treina para seu último campeonato; está no limite de uma aposentadoria precoce, falsa, a apenas um passo de se ver a mesma, em seus movimentos.

A segunda, ora ou outra uma criança, tenta confrontar a instituição de meninas na qual foi posta, feita prisioneira de regras e quartos coletivos, de trabalhos para talvez amadurecer à força. É nas escapadas à natureza, em campo aberto, que ela encontra alguma fonte ao respiro, nas brincadeiras com outras moças que a seguem.

Alcança, por breves momentos, as personagens de As Pequenas Margaridas: o desejo de colocar o sistema abaixo, questionar as regras, as coisas como foram dadas. As formas. A simetria que passa pela fábrica de linhos, pelo corpo da atleta e seus movimentos impecáveis em Algo Diferente. À tela impõem-se as cores, os recortes de revista, a impressão de aliteração visual, o delírio envolto no desejo de fazer o que quiser.

Margaridas, de 1966, nasce de total libertação e antecede a Primavera de Praga. A nouvelle vague tcheca encontra a expressão da indignação feminina que, à luz das obras anteriores da cineasta, fica ainda mais forte: às mulheres de antes, entre passado, futuro e a confirmação de que não saem do lugar em uma sociedade em preto e branco, respondem as meninas infantilizadas, em cores, que colocam o mundo abaixo e os homens a seus pés.

Essas garotas, ambas chamadas Marie (Jitka Cerhová e Ivana Karbanová), questionam até suas existências. “E quem disse que nós somos nós?”, diz a morena, de cabelos maiores. “Como você sabe que existe?”, ela segue, para então receber a resposta da outra, de cabelos mais curtos, lourinha, dividindo a banheira com a amiga: “Por causa de você!”.

Impressão de que tudo ocorre enquanto nada ocorre: as personagens permitem-se expressar a infantilidade como resposta àquele mesmo universo que se anuncia nos créditos, entre engrenagens metálicas destinadas ao mesmo movimento e bombas trocadas em uma guerra qualquer. “Deveria estar acontecendo algo”, afirma uma delas.

Na falta da ação, colocam fogo em tiras de papel presas ao teto do quarto, deitam entre cinzas, frutas, na brincadeira que não termina nunca. Uma das diversões é enganar os homens apaixonados que as procuram. Na companhia deles, comem em bons restaurantes, zombam, depois os levam à estação de trem e dizem adeus a esses senhores bem vestidos.

Chegamos mais tarde à sequência do banquete, na qual as meninas descobrem uma mesa farta sem adultos, sem nenhum convidado. A sala e toda a comida apenas para elas. Sentam em todas as cadeiras, comem um pouco de tudo, com as mãos fazem guerra de comida, desfilam sobre a mesa e terminam no lustre de cristal.

Em plena Guerra Fria, esse filme libertário é dedicado àqueles “que se indignam apenas por umas comidas pisoteadas”. Em tempos nos quais a loucura ganha traços de normalidade e bombas nucleares estão postas para destruir o planeta, Chytilová confronta ao abusar do absurdo, da aparente – agora poderosa – infantilidade.

(Strop, Věra Chytilová, 1962)
(Pytel blech, Věra Chytilová, 1962)
(O necem jiném, Věra Chytilová, 1963)
(Sedmikrásky, Věra Chytilová, 1966)

Notas:
Teto: ★★★☆☆
Saco de Pulgas: ★★★★☆
Algo Diferente: ★★★★☆
As Pequenas Margaridas: ★★★★☆

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

Foto do cabeçalho: As Pequenas Margaridas

Veja também:
A primeira-dama do cinema tcheco

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