Existem algumas coisas que precisam ser ditas desde o início sobre Věra Chytilová. Věra foi a primeira diretora de cinema mulher de seu país reconhecida internacionalmente. Věra é a única diretora mulher da czech new wave a conseguir visibilidade. Além disso, é de Věra o mais famoso filme dessa geração. Věra é a Eva do cinema tcheco.
Os filmes de Věra Chytilová presentes na mostra [no CCBB em 2014] revelam a maturidade juvenil da cineasta. Em Alguma Coisa de Outro (O něčem jiném, 1963) [também conhecido no Brasil como Algo Diferente], As Pequenas Margaridas (Sedmikrásky, 1966) e Fruto do Paraíso (Ovoce stromů rajských, 1969), o universo idílico em campos verdes e floridos emoldura histórias que remetem ao poder da mulher, à fragilidade dos corpos e à profundidade das emoções. Věra, na época vivendo a terceira década de sua vida, utilizava com sabedoria ácida elementos de sua juventude. A diretora passou a infância na Morávia, parte sul e menos urbanizada da atual República Tcheca. A paisagem campestre foi atravessada pelos revezes de um pai quase alcoólatra e de uma educação rígida num colégio de freiras. Věra passou pela filosofia, moda, arquitetura e fotografia antes de chegar ao cinema. Começou a cursar FAMU, Escola de Cinema de Praga, somente aos 28 anos, onde conheceu seu marido e parceiro de trabalho, o fotógrafo Jaroslav Kučera.
Comumente descrita como uma cineasta feminista, esta alcunha não é intencional muito menos imotivada. A diretora não se preocupa em defender o lugar da mulher ou questionar seu espaço da sociedade, ela simplesmente os assume como dados. Desagradando tanto moralistas quanto feministas da academia, Věra parece não estar preocupada em levantar nenhuma bandeira além da liberdade das mentes e dos corpos. Uma das frases mais conhecidas da diretora é a que define sua relação com a plateia: “eu não tenho nenhum desejo de mimar o público”.
Věra é a Agnès Varda da Tchecoslováquia portando o relho de Margaret Thatcher. Não é incomum que ela responda sem piedade entrevistas de jornalistas inocentes demais. A falta de docilidade por parte da primeira-dama do cinema tcheco talvez seja efeito do esforço que a diretora fez para cavar um espaço de ação no contexto nada incentivador do leste europeu pré e pós invasão soviética.
Usando a virtude mais poderosa do que poderia ser descrito como o feminino, a da comunhão e transformação dos opostos, para a alquímica Věra, a cultura patriarcal não é uma inimiga de guerra, mas um combustível para que se animem e se liberem os corpos femininos. Como em Fruto do Paraíso, em que Eva dá uma reviravolta na convencional versão da história sobre a expulsão do Éden.
As heroínas de As Pequenas Margaridas são duas meninas estragadas cujos hábitos podem “envenenar os trabalhadores” incentivando o desperdício de comida e a devassidão, conforme observou o relatório da censura tchecoslovaca que baniu o filme do país em 1966. As margaridas podem e devem ter o direito de ocupar o mundo e configurar suas identidades através da ação prazerosa – e por isso, para a Věra, sobretudo política – se dar ao luxo do desperdício por lazer: gula e luxúria.
No entanto, se pouco esforçado em agradar a sociedade, o experimentalismo de Věra agradou desde cedo à crítica. As personagens femininas em paralelo, Eva e Jirka, garantiram ao primeiro longa-metragem da diretora, o elegante preto-e-branco Alguma Coisa de Outro, que vencesse o Mannheim Film Festival, onde foi realizada sua première. O sucesso posterior foi confirmado com o explosivamente colorido e radicalmente montado As Pequenas Margaridas, que venceu em 1966 o Festival de Bérgamo, na Itália. Em 1967, o filme foi banido da Tchecoslováquia e o trabalho de Věra no cinema inviabilizado pelo governo. Ela ficou impedida de filmar nos estúdios de Praga e, escolhendo permanecer no país à revelia de um convite para viajar aos Estados Unidos, trabalhou em projetos em publicidade ao lado de Kučera.
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No ano de 2000, aos 71, foi apreendida na Alemanha por filmar para um de seus últimos longas uma cena em que a própria neta aparece nua. Filmar menores nus configura pedofilia. Ela arranjou outra praia menos conhecida onde a polícia alemã não lembrasse de colocar as leis em prática. Em fevereiro de 2012 um mau súbito surpreendeu a diretora que, passando dos 83 anos, respondeu aos jornais tchecos: “mas eu não quero parar agora, neste mundo ainda tem muito coisa a ser feita”.
Anelise De Carli, professora e pesquisadora, no catálogo da mostra Nouvelle Vague Tcheca: o outro lado da Europa, ocorrida em 2014 (Centro Cultural Banco do Brasil; pgs. 55-57). Věra Chytilová morreu em março de 2014.
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