Quelé do Pajeú, de Anselmo Duarte

O Nordeste é recriado, ou livremente falsificado, no interior de São Paulo. O diretor Anselmo Duarte não se esforça para que seus homens pareçam o que não são. O resultado aproxima-se do faroeste. A enganação é assumida. O que interessa é a aventura, o movimento de pistoleiros e belas mulheres; o caubói ressurge na pele do caipira, não do cangaceiro.

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O resultado impressiona apesar das estranhezas. Entre os signos do faroeste clássico e a forma febril do cinema moderno americano, Quelé do Pajeú é arte sob encomenda, peça de madeira talhada à faca, obra perdida no tempo justamente por não encontrar definição – ou condenada por espelhar algum extinto colonialista, reflexo estrangeiro.

Mas Duarte estava mais preocupado com a forma cinematográfica, menos com a política e seus lados. Dava de ombros à oposição. Seu faroeste tem o herói esperado, de coração trancado mas nem tanto, nem maldoso demais nem doente o suficiente para se deixar levar apenas pelo calor da vingança. O papel cabe ao galã Tarcísio Meira.

O caubói tem seu destino ligado aos índios da ocasião, os cangaceiros. Para se tornar um deles, em movimento reverso, não menos irônico: agora é o homem branco que se funde ao “estranho”, ao desalmado, ao selvagem que apenas invade e destrói, ao qual o cinema americano – no caso do índio – nem sempre conferiu humanidade.

O homem branco desce de seu pedestal, desprega-se da boiada que cuida, para ser um rebelde do sertão, dono da própria armadura, agora consciente de que precisa enfrentar os oficiais de farda. Em forma quadrada, beleza estranha, Clemente caminha para se tornar Quelé, para ganhar enfim seu nome de guerra, não antes de conseguir a vingança.

A irmã do herói foi estuprada por um forasteiro. Estava com a mãe, em casa, quando o criminoso invadiu o local. A sequência que abre o filme impressiona: Duarte usa câmera subjetiva; os cortes são bruscos; a montagem paralela funde o estupro aos movimentos de Clemente, em outro lugar, tocando bois em provável ganha-pão temporário.

O labor funde-se ao sexo à força, o trabalho ao crime, ainda que ambos, cada um à sua maneira, reduzam-se à selvageria desse universo – e da qual o mesmo não escapará em momento algum, a partir da já citada forma febril. De volta para casa, perto da mãe e da irmã abaladas, resta a Clemente não mais que uma missão: viver para ser Quelé.

A estrada reserva surpresas. Em pequena cidade, ele encara os passantes de um cortejo, precisa ver o morto para saber se se trata do homem que procura. De súbito, Duarte lança o espectador a rostos verdadeiros, gente simples, figurantes sem enfeites. A fita de aventura é – a exemplo de momentos posteriores – cindida por realismo.

O aspecto real confere grandeza, não o oposto. O mesmo se vê na passagem da Sexta-feira Santa, ou na sequência da festa do Sábado de Aleluia, com pessoas ao lado, aos fundos, no espaço em que Clemente precisa trazer a dama que o segue para perto de si, quando assume Maria do Carmo (Rossana Ghessa) contra os cangaceiros de Lampião. O amor de ambos é incerto, a aproximação parece dependência nesse falso sertão de conflitos.

Outra mulher rouba a cena. Guy Loup destoa dessa mesma gente verdadeira aos cantos, mulher cinematográfica que é. Algo como uma dama de Sam Peckinpah, delírio aos olhos masculinos, decote à mostra, pés descalços, cabelo armado entre a poeira, a saltar nos braços dos cangaceiros, pronta para tentar seduzir – sem sucesso – o herói do filme.

No embate derradeiro, outra vez com piscadelas a Peckinpah, Clemente e seu algoz (Jece Valadão) enfrentam soldados do governo. A câmera movimenta-se às janelas, à abertura que deixa ver os oponentes do lado de fora. A janela de madeira como moldura definitiva do faroeste, a confirmar a proposta do talentoso cineasta paulista.

(Idem, Anselmo Duarte, 1970)

Nota: ★★★★☆

Veja também:
Baile Perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira

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