A escadaria que dá acesso à igreja é a zona de tensão para diferentes personagens; é o local em que os opostos conjugam-se entre música e diferenças religiosas, entre o som do berimbau e a cruz de madeira pesada que deixou o ombro do protagonista em carne viva. O cenário é uma Bahia – ou um Brasil – de misturas.

O protagonista é o herói pacato que viajou sete léguas, ou alguns quilômetros, para colocar sua cruz pesada no interior da igreja e pagar a promessa devida. Resolveu encarar a empreitada após seu burro de estimação ser atingido por um raio e sobreviver. O milagre precisava ser pago. O homem, em O Pagador de Promessas, é Zé do Burro.
Aos outros da cidade ele parecerá exótico; suas qualidades logo serão distorcidas: ao invés de ser encarado como é, alguém de fé inabalável, consciência indestrutível, passa a ser visto pelo padre da igreja (Dionísio Azevedo) como o herege cooptado pelo Diabo.
Sua promessa tem raízes em terreiro de candomblé; sua missão, ares messiânicos, como se o homem simples, de poucas palavras, fosse capaz de tramar algo para si, buscar louros do mundo físico que a igreja tanto repudia. A proibição de sua entrada revela a pouca ou nenhuma aceitação aos diferentes pela Igreja Católica. Do alto da torre, o padre assiste às misturas da escadaria, toca os sinos para competir com o som do berimbau.
Para fora da Igreja tem-se a permissividade, sobretudo no espaço inferior à escadaria. No asfalto bruto, no interior do bar, na rua inclinada pela qual sobem e descem os passantes, na passarela reservada, nesse dia, a santos e soldados, ao palavreado solto, ao carro da loja com os produtos trazidos por um jornalista charlatão (Othon Bastos) para presentear Zé do Burro.
Dentro da igreja, ambiente de ordem e silêncio, não caberão todos – menos ainda a cruz pesada de madeira e o falso profeta que a carrega. Para fora, onde quase tudo é possível, será ele o novo Cristo aos olhos de alguns, o revolucionário aos de outros, o marido que, tão preso à sua missão, permitiu que a mulher fosse seduzida pelo Diabo.
Pois ela, Rosa (Glória Menezes), tão pequena, simples como ele, ainda se deixa enganar ou parecer enganável. Talvez não seja uma coisa ou outra, e talvez as personagens desse grande filme de Anselmo Duarte sejam menos rasas do que parecem – à exceção do Zé do Burro, transparente na composição de Leonardo Villar.
Na escadaria como ponto final de sua promessa, porta para o paraíso ao qual é impedido de entrar, ele usará a força se necessário. Seus golpes e a necessidade de cumprir a promessa chamam a atenção dos capoeiristas, amolam lâminas da imprensa marrom disposta a criar heróis, fazem inimigos que enxergam em seu ato o germe da desordem.
O que se torna, ou o que a ele é dado, aos poucos ganha contornos reais: mesmo morto, e talvez apenas assim, Zé do Burro enfim conseguirá cumprir sua jornada através do ponto de tensão, do espaço em que sempre se vê voltado ao impossível, em distância maior do que representa graças ao cuidado da direção exemplar de Duarte.
Não estranha, em seu destino incerto, que se torne o herói que nunca foi. Corpo dado, símbolo tomado pelos outros, agora parte da massa – ser for o caso, aos humildes que entendem os exilados de sua própria religião, um Cristo para ser posto na cruz, ao qual finalmente é dado o direito de passagem pela porta antes impenetrável.
O sucesso de O Pagador de Promessas não coube no Brasil da época, entre o fim da Vera Cruz e a emergência do cinema novo. Duarte pagou caro ao esculpir um grande filme em bases formais, nada revolucionário no tema ou no conteúdo para o paladar dos cinemanovistas. Seu país de misturas, pulsante, coube inteiro em uma escadaria.
(Idem, Anselmo Duarte, 1962)
Nota: ★★★★★
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
Veja também:
Vídeo: A retomada e seu ponto de partida: Carlota Joaquina
