A Primeira Noite de Tranquilidade, de Valerio Zurlini

O professor sente-se atraído pelo desconforto que a bela aluna produz. Estranha atração que o faz se dirigir a ela com alguma obsessão, pelos olhos, apenas nestes, de Alain Delon. A observação sobre a mulher, a Virgem Maria, no quadro de Piero della Francesca, cabe à mesma moça pela qual está apaixonado: “parece compenetrada, mas não é feliz”.

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A busca pela beleza, pela mulher idealizada, aproxima a moça da pintura, a amargura que se supõe nos traços de della Francesca ao enigma que a bela peça viva – aos olhos do professor – fornece ao público. Nem o homem adulto, em A Primeira Noite de Tranquilidade, sabe explicar ao certo o que a jovem transmite, ou o que nele atinge com força.

Valerio Zurlini compõe um filme sobre o humano sem caminho, cercado pela arte, pela religião, pelo desejo físico. A cidade em questão, Rimini, oferece a aparência dos caminhos infinitos ao mar, pela névoa, e o clima da época em boates e músicas dançantes, a cafonice que a personagem de Delon, sem dizer, despreza.

O professor, por sinal, surge caminhando à beira-mar, pelo frio, quando dois navegadores tentam descobrir em que cidade ou país estão. A presença dos visitantes pelo mar explica muito do que vem pela frente nessa jornada do homem rumo à “noite de tranquilidade”: o filme de Zurlini é sobre alguém – ou alguns – à deriva.

A menina é a última novidade antes da chegada dessa “noite” sem sonhos, do dormir para não acordar mais: a morte. Seria ela, tão bela, tão amarga, o anjo da morte? Idealização que se faz triste, pintura em carne, como a Virgem Maria que só pode existir em um quadro que, como lembra o professor, antecipa o destino do filho que carrega.

Daniele Dominici (Delon) esconde o próprio passado até não poder mais. A aluna por quem se sente atraído, Vanina (Sonia Petrovna), terá seu passado e suas raízes expostos, mais tarde, para a dor do homem, talvez por entender que o mistério enfim se encerra, que todos têm sua própria história e que dela não é possível fugir – como se dará com ele.

A moça namora um jovem ricaço (Adalberto Maria Merli) que corre com seu carro vermelho esportivo pelas ruas apertadas, representação da nova burguesia. Seus amigos são amigos do professor. A cidade parece pequena: todos se encontram no mesmo lugar, na mesma boate à qual Daniele vai para matar o tempo, onde não contava encontrar Vanina.

As luzes intermitentes revelam rostos que trocam de posição, o olhar dela ao protagonista, momento em que, em plano e contraplano, não há mais dúvida do que ele sente pela jovem que insiste em se fechar. A melancolia conquista-o. Como ele, a moça talvez seja alguém descrente, existencialista, disposta a questionar as “boas coisas do mundo”.

Parte desses seres prefere o comodismo, as jaulas, as boates e festas de projeção de luzes, de libertinagem, de jogatinas para deixar correr o acaso, o vídeo íntimo que se converte em cinema para convidados. Daniele, a certa altura, fala de golfinhos para falar dos homens: “Não há nada como a falta de liberdade para proporcionar momentos de alegria”.

A cidade é provinciana. Segredos são comprados com dinheiro. A mãe de Vanina (Alida Valli) tem motivos para escorraçar o professor que nada pode oferecer à filha senão a reflexão para escapar da jaula, talvez para se lançar à “noite de tranquilidade”; o velho diretor da escola (Salvo Randone) recusa a contestação, as ideias de 68.

O protagonista vive com outra mulher, Monica (Lea Massari), a quem só pode deixar um quadro. A essa altura, está perdido o suficiente para sair de casa e correr aos braços da jovem. Em nova jornada, ainda pensa em Monica, na possibilidade dela suicidar-se. A dor consome-o. A mulher com quem vivia é real, diz o que não quer ouvir.

(La prima notte di quiete, Valerio Zurlini, 1972)

Nota: ★★★★☆

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