O homo sapiens assemelha-se a um animal selvagem enquanto se movimenta. Seu inimigo, no início de A Guerra do Fogo, é o neandertal, anterior na escala evolutiva, coberto de pelos dos pés à cabeça, monstro assustador que, à tela, não esconde quem é. A luta é simbólica: quem ataca leva o outro lado à batalha de animais.
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Os mais evoluídos guardam o fogo na caverna. Protegem a chama como algo religioso antes de surgir a religião. As labaredas são formas místicas àqueles olhos lotados pela crença que não sabem reconhecer ou explicar. Aos arredores da caverna os lobos famintos aproximam-se dos homens, à espera da carniça, de outro ataque.
O fogo é a energia não dominada, iluminação, mistério. Dói, aquece, promove o círculo de corpos, uns sobre os outros, contra o frio. E se não pode ser criado, terá de acabar para que o mesmo homem – o novo – deixe a caverna, a ilusão provocada pelas sombras, como na alegoria de Platão. A guerra transforma, obriga o homem a cair no mundo.
A jornada de descobrimento do filme de Jean-Jacques Annaud chega com sinais de involução: para escapar de dois tigres dentes-de-sabre, as personagens recorrem à árvore. Ficam ali por horas, talvez dias, até os animais desistirem de esperar e irem embora. Como antes, como os primatas, recorrem aos galhos para sobreviver.
Pela viagem, descobrem um mundo novo: a mulher, talvez o amor e, claro, uma maneira de criar o fogo. Não seria mais necessário guardá-lo em pequena estrutura de ossos e pele, pequeno altar de adoração, cápsula sagrada para tempos sem religião, tempos em que se corre para sobreviver ou se adere ao espírito involuntário da vagabundagem.
A tamanha importância do fogo faz com que os novos homens, três em viagem, passem seus corpos pelas cinzas da fogueira apagada, incêndio passado, em um dos melhores momentos do filme de Annaud. Descobrem a matéria do fim, o pó, inegável simbolismo sobre o destino de suas próprias matérias: embriagam-se com suas partículas.
Ao longo da viagem, encontram uma tribo carnívora com uma fogueira para adorar. Os novos inimigos preparam-se para comer dois humanos de outra tribo, entre eles uma mulher. É quando o destino muda para os três à frente da jornada: será ela, sexo oposto salvo por eles, o caminho para a dominação do fogo, dona de mãos delicadas das quais brotam a fumaça.
Ensina ainda mais: os homens não precisam tomar as mulheres por trás. Ela pede um novo gesto, outra proximidade, outra forma de ligação – para a surpresa dos colegas que assistem ao ato. Sexo, fome, tudo às claras nesse rito de passagem, sem esconder a contradição inicial: em cada personagem que procura pelo fogo ainda vive o animal selvagem.
Não será assim naquele último ato sexual. A posição permite o olho no olho. Para Annaud, não será necessário tanto para se representar tal passagem; sábia decisão visual, como outras que mantêm o filme no campo do embate físico, dos homens como eram à época retratada: um pouco como animais dependentes da fome, do fogo, do sexo.
Nesse sentido, a música excessiva de Philippe Sarde atrapalha. Retira do filme o aspecto naturalista, fornece as bases para os toques de uma ficção que, a cada tom da trilha, anuncia o processo da jornada, altos e baixos, riscos, descobertas. Interessante traçar um paralelo entre o uso da música aqui e em 2001: Uma Odisseia no Espaço.
Enquanto no filme de Annaud a música tenta não ser notada, sendo parte do todo, ocorre o oposto: evidencia traçados, a forma de um filme calculado. No de Stanley Kubrick – que reserva a primeira parte aos primatas, na Aurora do Homem – a música é pontual, celebração a ser notada, fusão que lança a grande epopeia da evolução humana.
(La guerre du feu, Jean-Jacques Annaud, 1981)
Nota: ★★★☆☆
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