O que assusta em Monsieur Verdoux não é a crueldade, mas a humanidade possível. A maneira como Charles Chaplin conduz o espectador ao homem forjado à comédia em um mundo feito a dinheiro, no qual apenas o oposto do Vagabundo pode ter sentido: o assassino de mulheres ricas, a quem ainda se permite o sentimentalismo.
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Difícil compreender essa obra à luz dos filmes anteriores de Chaplin. Necessário, por isso, ir além do universo do Vagabundo, do ser chapliniano: para além dessas muralhas bem delimitadas, diz o autor, há o mundo real, revelação à qual todos são lançados, espaço da mesquinharia dos números, da miséria da acumulação.
Ninguém nega o comunismo de Chaplin. Tampouco o universalismo da mensagem – seja na pele do Vagabundo perdido nas trincheiras ou nas fábricas, seja na de Verdoux – em comunhão com a realidade, com o mundo do qual não se desprega. Chaplin olha à realidade pelo ângulo do cômico que é. O resultado é o assassino em questão.
A personagem-título mata para acompanhar sua época. Pode parecer radical, exagerado, sobretudo a um humanista como Chaplin. Mas é dessa contradição pura que sobrevive o absurdo de sua comédia, no limite do sonho: da inversão do Vagabundo, alheio à realidade, surge Verdoux, do qual a realidade não escapa em instante algum.
Pois se o Vagabundo em figurino surrado vivia a perambular pelos cantos, como o herói acidental, Verdoux procura o próprio controle, alguém que tudo calcula, que conta as notas de dinheiro com destreza invejável, para o desespero – ou a graça – do espectador.
É André Bazin quem melhor define esse ser curioso, Chaplin inegável apesar de tudo: “Carlitos é por essência o inadaptado social, Verdoux, um superadaptado”, observa, entre outras questões, para apontar ao espelho invertido. Os erros de um deixam ver os acertos do outro, a começar pela condição social, ou pelo desfecho certo – ou trágico.
Carlitos, o Vagabundo, insistia em caminhar ao indeterminado, em se fechar à tela à medida que esta se fechava para ele: seguia a lugar algum para seguir vivo na mente do cinéfilo. Ao Verdoux que trapaceia, que mente, que mata, resta o destino triste, ainda que sua caminhada – veja a ironia do gênio! – deixe ver justamente o Carlitos de outrora.
É essa metamorfose que faz esse filme estranhamente grande, curioso, às vezes oportunista: é Chaplin em discurso ainda mais poderoso – claramente comunista – que o d’O Grande Ditador. É Chaplin no pós-guerra, na vitória do capitalismo absurdo, do mundo regido pelo grande rei, o dinheiro. Sua personagem comunga com esse tempo.
A boa comédia ainda assim não lhe escapa. Por isso mesmo o filme parece incompreensível. Como pode fazer graça com tal absurdo, ao dividir sua personagem com o espectador à medida que a mesma o encara, como se insistisse na cumplicidade? O olhar à câmera é por essência a revelação maior de toda a falsidade.
Contra Verdoux há algumas damas irritantes, e não estranha se o público torcer por ele. Faz parte da comédia macabra. E vale reparar como Verdoux pode ser muitos amantes sem nunca deixar de ser o mesmo – ao passo que seu reflexo invertido, o Vagabundo, não tem identidade, sequer um passado.
Verdoux pode ser um homem estranho, alguém “definível”, longe do mito reservado ao Vagabundo. Se algo tem de dar errado a Verdoux, talvez seja pelo simples fato de o mundo não fazer sentido, o que explica também seu movimento para salvar a moça simples, sem dinheiro, que certo dia vai parar em sua casa. Ela enxerga sentido no mundo sem sentido.
A partir de uma ideia de Orson Welles (que, em entrevista a Peter Bogdanovich, diz ter escrito a primeira versão do roteiro), Monsieur Verdoux chega à quebra da Bolsa, ao desespero dos apostadores e milionários, ao mundo sob a imagem de Hitler (o verdadeiro). Rumo à guilhotina, Verdoux, de sua cela, reforça a estranheza de tudo que o cerca: grande ou pequena, do homem ou da nação, a morte é um negócio.
(Idem, Charles Chaplin, 1947)
Nota: ★★★★☆
Veja também:
Vídeo: Chaplin vai à guerra: humanismo e tragédia
Mais uma Obra-prima do Chaplin, pena que esse filme não tem o reconhecimento que merece.
Parabéns pelo texto.
Obrigado, amiga! Abraços!