Diário de um Pároco de Aldeia, de Robert Bresson

O padre confessa ter medo da morte. Outra de suas confissões, em diário compartilhado com o espectador, aponta à ausência de Deus. É forte, súbito, de uma honestidade estranha à qual Robert Bresson filia-se do início ao fim de seu magistral Diário de um Pároco de Aldeia: tudo o que diz esse homem, não se duvida, é verdade.

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O relato, fundado na cumplicidade, mostra um padre em dor, homem pequeno, ou a luta para se impor em um pequeno mundo, a aldeia, rodeado por problemas, pelos olhares de medo ou ódio dos outros. Filme sobre sobreviver a esse mesmo mundo, não enfrentá-lo ou aceitar um duelo; a despeito dos outros, seguir firme, abalado, a abraçar a fé.

Bresson é um diretor religioso no sentido realista. Não faz concessões às facilidades que a fé pode proporcionar, ou o caminho que oferece àqueles em busca de redenção. Prefere outra palavra, talvez ainda mais forte no contexto de Diário de um Pároco de Aldeia: “resignação”. É o que pede o padre à baronesa que decide se suicidar.

É possível se resignar, conformar-se com Deus e suas vontades, no mundo que vive a guerra ou que de sua experiência renasce, no momento em que o filme é lançado, em 1951? Tarefa das mais árduas: com seu padre silencioso, que se deixa abater e sofre, cuja atitude crítica dá-se no silêncio ou na confissão à palavra, Bresson oferece a resignação.

Aceitar como ato de força, estranhamente, porque o padre talvez aceite que nada pode fazer: suas palavras a lápis, no diário surrado, atestam seu próprio fim, seu olhar a si mesmo, o sentido de sua fraqueza. Ele está doente, não pode comer qualquer coisa. Sofre do estômago. A doença física representa a dor da alma, a dificuldade de viver.

Descendo as escadas, apaga o lampião e confessa, em narração: “Deus me abandonou. Disso eu tenho certeza”. Com ele, dividem a tela outras poucas personagens, a maioria de passagem. Pessoas mesquinhas ou bondosas, meninas com rostos difíceis de definir senão pelo caminho da ignorância, o mais fácil: são filhas diretas do Diabo.

Meninas que, aos olhos do padre, ou do público, representam um mundo para desacreditar: ouvem conversas que não poderiam ouvir, espalham histórias, mandam cartas anônimas pedindo a saída do padre. Todo o mal ao redor é transferido ao público pelo olhar do protagonista, sempre ao papel, na transmissão de seus sentimentos.

Poucos filmes têm efeito semelhante. Bresson, em seu realismo seguro, sua secura e ausência de interpretações à flor da pele, oferece um estado diferente de adaptação. Como observou André Bazin ao se debruçar sobre a estilística do cineasta, o filme apresenta uma dialética entre cinema e literatura. “Já não se trata de traduzir, por mais fiel e inteligentemente que seja, tampouco de se inspirar livremente, com um respeito apaixonado, com a intenção de fazer um filme que copie a obra, e sim de construir sobre o romance, através do cinema, uma obra secundária.” Bazin defende a criação do “romance multiplicado pelo cinema”.

Nesse sentido, Diário de um Pároco de Aldeia é um passo além, transposição diferente, como se Bresson saísse em busca de outro resultado apesar da adaptação direta da obra de Georges Bernanos: um filme que, por um lado, mantém certa aparência bruta, como a do registro direto, e, de outro, a profundidade conferida pela palavra, ou pela confissão.

Trata, sobretudo, do padre que talvez não suporte o peso de sua caminhada, a quem o mundo ao redor – nunca pequeno como parece – esmaga e não se deixa entender. “Não entendo as pessoas e nunca entenderei”, confessa o mesmo, interpretado por Claude Laydu, rapaz de olhos tristes, nascido à tela como livre derrotado.

Sem querer, mas por obrigação de ofício, o padre é obrigado a saber e viver o problema dos outros. Sem escolha, abraça, assiste às intrigas, aos problemas, enquanto pede – por mais difícil que pareça, de sua natureza honesta – a resignação. Estranho ao estado do universo em questão, perfeitamente alinhado àquilo que o homem e sua alma representam.

(Journal d’un curé de campagne, Robert Bresson, 1951)

Nota: ★★★★★

Veja também:
Fé Corrompida, de Paul Schrader

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