As senhoras italianas não combinam com os soldados alemães que, no meio da noite, batem à porta. Não se fala aqui de diferenças de classe ou nacionalidade. Ao diretor Roberto Rossellini, essa será uma das várias distâncias entre as figuras em cena, pessoas que não se filiam, que, na mesma cidade, expõem opostos em um cinema de renovação.
Essas senhoras, mães de família, mulheres reais, humildes, assustadas são pessoas que “estão por aí”, no nosso cotidiano, levadas aqui a um conflito que as obriga abrir suas portas a seres desalmados, robóticos, os pequenos soldados de Roma, Cidade Aberta. Não se expressam como a personagem de Anna Magnani, nem preferem a contenção dos partigianis.
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Rossellini tem pleno domínio desse cinema sobre diferentes. O conflito é fruto também do estranhamento, do mau encaixe, do clima de cidade invadida como casa arrombada, aos olhos do estranho. O sentimento de ser perseguido por fazer parte, não o contrário.
A todo esse sentimento que ora emana dos poros (como nos de Magnani), ora do registro com alguma distância (como no de Marcello Pagliero), soma-se o realismo que o mesmo cinema propõe. Com a Itália entre escombros, após o fascismo, a presença nazista e a guerra, Rossellini e outros autores da época escolhem as ruas e gente comum.
As senhoras que abrem as portas aos nazistas monossilábicos, as crianças que partem para o ataque e todos os outros que não aceitam o autoritarismo interno ou invasor fazem parte desse grupo levado à tela do cinema. Dava-se, de repente, uma nova forma que, em Roma, ainda não recusava situações de roteiro e construção de personagens conhecidas. Dava-se ainda, aos nossos olhos, uma transição, um cinema claramente desajeitado.
Em alguns momentos, Rossellini toma o real como partícula última, como nas passagens com câmera na mão, nas ruas, em instantes nos quais a ação é pequena e ao mesmo tempo total, viva, produto de uma imagem que soa invasora. Como se alguém de fora, como em uma reportagem, estivesse filmando os passos dos resistentes sem que soubessem.
Entre atores e não atores, em busca da profundidade de campo nem sempre encontrada (ou quase nunca, por isso com distorções nos cantos e no fundo), um cinema inaugural mas já nascido (com Obsessão, de Visconti), em vias de pulverizar todo seu protagonismo para dar mais voz àquelas almas atacadas, àquele povo simples e combatente.
A obra toda é sobre abrir e fechar portas, em sentido contrário à proposta das famosas comédias americanas que imperaram nos anos 1930 e início dos 1940. Dessa vez, as portas são abertas para a descoberta de novas pessoas, vidas, lares, dramas, outras camadas possíveis no amontoado de dificuldades que não se resumia à fila do pão.
O anti-espetáculo pelas inúmeras portas, nos apartamentos apertados de pessoas doentes, invadidos pelo estrangeiro, ou nos terraços e becos que serviam à fuga. Se na comédia clássica o objetivo é surpreender com movimento e surpresas frívolas e engraçadas, no drama de Rossellini a ideia é mostrar que todos estão no mesmo lugar, caminho ou labirinto.
No interior de seu próprio povo, extensão dele, Magnani, ao contrário do chefe nazista, não chega a ser uma caricatura. Rossellini faz da mulher a personagem mais forte e do vilão uma figura efeminada, fina e malvada, que não aceita a não superioridade de sua linhagem. O diretor comprova: os vilões são pequenos, banais.
Em artigo sobre Rossellini escrito em 1958, Paulo Emílio Sales Gomes afirma que o neorrealismo do diretor é “uma posição moral através da qual contempla e investiga o mundo; e praticamente significa acompanhar com amor os seres através de todas as suas impressões, descobertas, perplexidades e vicissitudes, evocando simultaneamente a contemporaneidade e a eternidade do humano”.
Ao que parece, não há contradição em se particularizar e, ao mesmo tempo, abrir-se ao mundo. O neorrealismo é, como afirma André Bazin (da ideia de Amedée Ayfre) em O que é Cinema?, “uma descrição global da realidade feita por uma consciência global” e, no mesmo texto, que “seu realismo não recai tanto sobre as escolhas dos temas, e sim sobre a tomada da consciência”.
Nesse sentido, o neorrealismo traz o novo a partir de matéria conhecida, o realismo; com Rossellini, tem face humana e religiosa, é parte do povo, de pessoas que convivem entre estátuas do sacro e do profano – as quais, pelo padre, serão postas em direções contrárias. Gente que acorda no meio da noite para abrir a porta para o estrangeiros fardado, que adora belas dançarinas de cabaré, que não entrega o outro mesmo sob tortura.
(Roma città aperta, Roberto Rossellini, 1945)
Nota: ★★★★☆
AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

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