Hardcore: No Submundo do Sexo, de Paul Schrader

O pai sofre enquanto assiste ao filme em um cinema imundo, fitinha que ganhou diferentes nomes, pornô no qual sua filha é vista fazendo sexo com dois homens. Ele leva a mão à face, pede que o filme, de poucos minutos, seja encerrado. Hardcore: No Submundo do Sexo pode ser resumido a esse momento, ao sofrimento de um pai.

O homem em questão quer reencontrar a filha, na tentativa de retirá-la daquele inferno. Calvinista, Jake VanDorn é obrigado a ver o que não quer, a encontrar o mundo que nega, que lhe oferece não mais que repulsa. Transpira ódio o tempo todo, de pocilga em pocilga.

O diretor Paul Schrader já havia revelado personagens e universos semelhantes nos roteiros de Taxi Driver e A Outra Face da Violência, dirigidos, respectivamente, por Martin Scorsese e John Flynn. Em ambos, homens veem-se obrigados a mergulhar em ambientes sujos, de violência e sexo barato, contra a América individual.

São, como Hardcore, jornadas de sobrevivência e loucura, sem que sejam dadas respostas fáceis. Os homens em cena estão preocupados em promover certa “limpeza”, não em compreender por que as coisas são como são. No caso de VanDorn, a predestinação à qual se lança, pela fé, não retira a possibilidade de se mover para resgatar a filha.

O sofrimento no interior do cinema, a resumir o todo, tem fundo religioso: não se trata apenas de ver a descendente em tal situação (o que seria um horror a qualquer pai, é certo), mas de encontrar outro lado impensado – ou até então não confrontado – pelo homem que se entregou a Deus, da pequena cidade conservada pelo frio, coberta pela neve.

“Deus concede a graça a quem melhor lhe apraz. Não basta ter fé. É preciso ainda que Deus não dê as costas”, observa o crítico de cinema Inácio Araújo, sobre a obra de Schrader. Nesse caso, Deus fez suas escolhas, moveu suas peças, e o homem ainda assim tem força suficiente para enfrentar todas as barreiras para reencontrar a filha.

O que vem pela frente – nas luzes azuis, vermelhas, verdes e em qualquer outro tom que se funde à noite, na maneira fácil das mulheres, atrás de alguns dólares, na forma desbocada dos atendentes das lojas de itens eróticos, na livre negociação do produtor de filmes pornográficos – é o oposto ao tempo passado, o da história pronta, da sociedade pacata apresentada nas imagens da abertura, das ruas à casa de família.

George C. Scott é perfeito ao papel do pai perdedor, enérgico, movido pelo ódio. À mesa, ainda no início, ele ocupa a ponta, ora; tem o centro, as atenções, emite sinais de explosão antes mesmo de chegar a tanto: é alguém que preferiu o estado de reclusão. Não combina com as camisas floridas e o tipo fácil da América tropical.

Desce ao inferno ao conhecer o outro lado. Descobre que, para encontrar a filha, precisa estar entre pecadores – sentir como eles, ou como a própria filha. Talvez ela tenha optado pelo outro lado, pelo desconhecido, pela liberdade total, e, à primeira vista, qualquer uma dessas opções não funciona no horizonte limitado de VanDorn.

Em fingimento, na pele de alguém que deseja financiar um filme pornográfico, o protagonista conhece pessoas, faz conexões, ouve de um homem negro e forte detalhes de sua forma anatômica, como se, por isso, apenas por isso, não pudesse negar sua participação no filme que nunca será feito. Retorna-se à carne, ao hedonismo desenfreado.

A ação oculta, em certa medida, a fragilidade da personagem. É intencional. Atrás do homem dessa nação bruta, do ser rumo às labaredas simbolizadas pelas luzes alternadas e pela escuridão dos becos, esconde-se a pessoa de visão estreita, sem muito a fazer senão atacar algo maior, nem sempre fácil de enxergar ou compreender.

(Hardcore, Paul Schrader, 1979)

Nota: ★★★★☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

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